O mais cheio é sempre o melhor. E estava delicioso. Digno de memórias compridas e de até a próxima. E depois, procurar o ônibus para Dias D'Ávila. Salvador barato, falava um cara magrelo e alto. Mas falava meio escondido, meio como se estivesse nos fazendo um favor ou oferecendo alguma substância especial e poderosa. A gente vai para Dias D'Ávila, cara, eu disse. E ele fez a maior cara de desencanto que já vi na Bahia. Ahhhhh.... Dias D'Áaaaaaavila. Caramba. E esqueceu da gente.
Eu falei: se Deus existe o próximo ônibus é o nosso. Não era. Mas quem sou eu para duvidar das existências divinas? Já ia cometer sacrilégio (e na Bahia!) e o próximo que veio era. Olhei ele se aproximar e pensei que estava cheio demais. Entrar de qualquer jeito. Vai pró fundo. Na verdade, a essa altura não estava tão cheio. Mas o percurso era longo longo longo. E foi enchendo como faz uns 22 anos não vivia. Deeeentro do ooooonibus cheeeeeeio. A não ser o exotismo evidente da minha própria face no interior duro da Bahia, eu poderia jurar que estava em um ônibus peruano, lotado, indo para a faculdade ou para o trabalho. Mas era este um lugar tão diverso.
A alegria das companhias, e a expectativa - agora sim, viva, presente, sem elaboração racional nenhuma - dos encontros com Ernande e família, fizeram mínimo o desconforto. O problema maior eram as malas. Pequenas mas bem gordinhas. O problema era sentir que incomodávamos a essas pessoas. Teve algo de isso, mas pouco.
O melhor da viagem foi a simpatia, a gentileza e a amabilidade delas. Pessoas simples, algumas de pobreza evidente, cansadas, e resignadas a ficar apinhadas, de cotovelo-com-cotovelo. Mas bem-humoradas. Curiosas conosco, mas discretas.
Sobe ex-pressidiário para vender canetas "finas" - caras para ônibus - e faz longo discurso. Conta e reconta a vida toda. Inventa, dramatiza, grita. E a cada 3 a 5 palavras grita Jesús e Amém. Nada demais. Todos, pacientes, escutam. Ele escorrega pelos impossíveis espaços vazios - de milímetros. E desce.
Num momento, depois de hora e meia de convívio humano colado, o ônibus quase esvazia - Camaçari, disse uma senhora simpática; e eu consigo enfim sentar. E a mala ainda incomoda um pouco aos outros; e eu quase estou xingando a mala.
Mas a mala é fiel. A mais velha, a menor, a mais leve, a mais maltratada. E cheia de coisinhas para presentear, ficou um chumbo.
Pela janela, no fundo, as chaminés e torres da refinaria de Camaçari. O ônibus vai, vai e avança... e a cidade (a refinaria é quase isso) não termina.
Quanto desgaste, sofrimento direto e indireto; e quanta destruição do ambiente! A corporação, saberia depois, é dona do território. Faz de tudo para parecer boazinha, bondosa, cuidadora.... mas....
Finalmente Dias D'Ávila. Quase toda feita de casas de um ou dois andares. Dois ou três bares por quarteirão. Algumas árvores impressionantes que lembram como deve ter sido antes essa mata. Cidade dormitório, penso. E falo com meninas de branco, sentadas no ônibus - devem ser da Saúde - e peço que nos avisem aonde é o hospital municipal.
Ao saltar com a mala gorda, torço o pé. Ele vai me lembrar a idade - que nunca lembro - ao longo do dia. E sentamos, felizes de ter chegado. Felizes de tudo. A sensação de dureza, abandono, desordem urbana, pobreza e perversão óbvia das corporações não nos abala.
Sentamos no chão, na grama, no solo bahiano, no lugar onde mora o amigo e profeta, aquele que leva a tocha teimosa e dura da verdade - com sua inerente relatividade.
Ligamos. Em minutos aparecem as figuras vagarosas e carinhosas. A cidade vira outra, mais afável, mais gostosa, e começamos a discernir os lugares da beleza, os detalhes, as cores das folhas, das núvens e do céu.
Dias D'Ávila se abre através da familia que nos acolhe. Mesmo com os problemas, rotinas, tensões e inúmeros etcéteras que toda vida de migrante temporário traz.... Ernande, Larissa e a pequena (e poderosa) Alice nos abraçam e começamos realmente a coexistir nesse enigma que sempre será o espaço onde os humanos habitam, se emocionam, morrem e nascem.
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