Um dia
Tem dias que entendo. As pessoas me olham e pedem e, tem dias, que finjo que acredito. E pergunto mais para saber: carrega frutas na companhia de abastecimento de hortifruti, mistura cal com cimento, limpa o chão do shopping, atende no balcão, carrega carne para o frigorífico, lava roupa, cozinha em caldeirão, controla ticket no estacionamento, faz ligação para vender um produto, carrega fardo, mata um leão por dia...
Daí, um dia, briga com o namorado, o irmão usuário de crack não dorme em casa, a patroa desconfia dela que levou o brinco da menina, a filha chora de saudade do pai que não a visita, o pai recomeça a beber, alguém bate em alguém, alguém grita com alguém, a vizinha perde o filho assassinado, a mãe vai visitar o filho na prisão. Ou nada. Ou a vida. Ou só chove. Só venta. Só faz sol forte, forte demais, forte demais, demais...
O jeito é ir pra fila. Metade do dia decidindo o que fazer. Outra metade do dia entre fila e atendimento. "Pode me dar um atestado?". Um dia. Só um dia. O que resta do dia. O que restou da indecisão e da estadia no posto de saúde. O dia pra esquecer, o dia pra sonhar, o dia pra nada fazer, nada. Porque nada é essencial. Nada é refúgio do que não se pode fugir, do que se tem que enfrentar amanhã. Porque amanhã é outro dia (?).
Sei que inventam uma doença, como inventam poucas horas do dia, pra sonhar, pra viver em um mundo sem a opressão, a obrigação, a acusação, a humilhação, o peso e a incompreensão de um dia de trabalho. Sei que, muitas vezes, o que carimbo são horas de redenção e esperança, descanso e até apatia. Mas são horas que cada um tira pra ser o que quer ser. E se o fundamento é só burlar a vida, ela volta no dia seguinte, sem dó.
Sim, me incomoda a meia verdade. Também avalio quem, como, o quê está por trás. E, muitas vezes, nego o dia. Porque um dia a menos para um, pode ser um fardo a mais para outro. Mas, em geral, é um dia ou, já disse, meio dia. É meio dia para resolver a briga, visitar a mãe no hospital, se recuperar da visita do filho na prisão, descansar os braços das caixas de frutas, descansar os ouvidos dos gritos da patroa, chorar, dormir, desejar...
Em alguns muitos momentos, muitos dias, eu mesma proponho: um, dois, três dias... Sim, para sentir uma manhã diferente das outras, para almoçar em família, para ver os filhos voltarem da escola, para experimentarem uma nova receita de bolo, para verem amores distantes, para cantarem mais leves no banho, para decidirem os próximos dias, os próximos caminhos, os próximos dias. Às vezes, um dia pode ser revolucionário!
Em um dia se faz um filho, nasce um filho e morre um irmão. Um dia, aprendi com o tempo, como o olhar apreensivo dos pacientes aos estudar meus gestos, minha escrita e meu carimbo, tal qual martelo de juiz, decisivo ao fazer a sentença de quantos dias se tem para ser só mãe, só filho, só irmã, só gente. Tal qual fazer nada, ser gente é essencial para seguir. Seguir martelando, misturando massa, tempero e criando filhos.
"Pode avisar", diz a música que repito em silêncio, tantas vezes. "Invente uma doença que me deixe em casa pra sonhar", canto. E mais do que a invenção, mais do que a doença que nem sempre tem nome, penso no sonho. Queria perguntar mais do sonho do que da dor. Mais do desejo do que da náusea. Mais da esperança do que da tontura. Mais do amor do que da cólica. Mas pelo constrangimento da meia verdade, respeito o segredo.
E respeito, sabendo que haverá o tempo de compartilhar, o tempo de não se envergonhar, o tempo de dizer mais de si e da vida, tempo de confiança, nunca sem medo. Pois para quem luta por somente um dia, meio dia para sonhar, o medo é companhia. Silenciosos, médica e paciente admitem, juntos, um dia para sonhar. Ambos, de alguma forma, pactuam, com um olhar e um sorriso. E depois que se separam, mergulham em suas solidões.
Ela, ele, sai feliz, pensando no tempo que tem, que é pouco, mas é raro. Eu fico, feliz, mas desejando mais tempo de escuta para saber se tem sonho ou se é só fuga, se é só a realidade que quer mandar pra longe. Daí, em vez da receita convencional, muitas vezes escrita para justificar para ambos a existência de alguma moléstia, queria ter também a liberdade de prescrever poesia, por de sol, colo de mãe, beijo de amor.
E receito, sim, de um outro jeito, quando me sinto próxima, quando o vínculo e a confiança se estabelecem. Receito o aconchego de uma sopa de vó e o carinho da massagem nas costas da esposa. Porque sei que doença é quando não temos esperança, carinho, atenção e sonho. Porque sei que um dia é pouco, muito pouco para sonhar. Mas um dia é um começo, é uma promessa, é um caminho. Daí, assino e carimbo, sim, e peço pra voltar...
Esperança, carinho, atenção e sonho.... coisa rara... coisa que é enterrada pela vida dura. Mas eu achei. Tenho e defendo.
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