Inaugurando a seção convidados da Rua Balsa das 10 um texto do professor da UFPB Marcos Vasconcelos.
No final da tarde, juntamente com a ACS, vou através da rua principal da favela até a porta da casa onde ele morava. Porta aberta, café e bolachas numa mesinha no canto do terraço, alguns familiares sentados.
Um irmão, que eu já conhecera de outra visita, vem me cumprimentar com um sorriso no rosto, pede logo desculpa por estar provavelmente com a boca cheirando ao aperitivo que estava bebendo. Digo: "não tem problema, na despedida de alguém querido não tem que ter só lágrimas; é importante celebrar as boas lembranças que ele nos deixa". Ele responde: "e ele gostava de uma caninha também, ele era muito animado... e de um forrózinho também", complementa após ser interrompido por uma música de forró de um carro que passava na rua.
Entro na sala, onde o corpo repousa com as mãos entrelaçadas num terço dentro de um caixão coberto de crisântemos. O cheiro das flores e das velas em castiçais de prateados ocupavam todo o cômodo, enfeitado com imagens de santos em quadros e com homenagens e coroas floridas. Fico conversando, ao lado do corpo, com duas irmãs e uma sobrinha dele. Uma das irmãs me confessa que não estava acreditando que o Dr. Marcos que tanto falavam era realmente médico: "nunca vi nenhum médico visitando e acompanhando uma pessoa doente em casa assim".
Os familiares disseram que ele perguntava muito por mim nos últimos dias. Quando a ACS ia visitá-lo, ficava entusiasmado pensando que eu também o estaria visitando, depois ficava triste quando percebia que eu não estava lá. Já com pouco apetite, disse: "não vou comer; só vou comer quando o Dr. Marcos chegar; ele vai logo chegar...". Nos seus últimos dias, se despedia de todos os familiares e amigos dizendo que estava "indo embora" e que estava pronto. Seu Geraldo passou o dia anterior a sua morte conversando, ora alto, ora baixinho, ora com os familiares presentes, ora com pessoas ausentes, como com sua mãe já falecida. Na sua última noite, vislumbrava uma pomba branca ao lado de sua cama e dizia para sua esposa tirá-la de lá. Ao lhe cobrirem com um mosquiteiro para evitar picadas dos mosquitos à noite, falou que estava vendo o véu de Nossa Senhora, que estava lhe visitando.
Despeço-me dos familiares, falando da garra de viver do Seu Geraldo e da importância daquela união familiar e dos amigos para o seu cuidado.
A outra irmã fala: "acho que isto era tudo o que ele queria, neste momento, ser velado em casa ao lado de seus parentes e dos amigos do bairro que viveu há tantos anos". E num aperto de mão, complementa: "muito obrigada, pela atenção dada ao meu irmão, todos nós somos muito gratos a sua dedicação. Deus o abençoe".
Volto para casa, lembrando-me do texto que há dez dias li e deixei uma cópia para Seu Geraldo:
"Dizem que antes de um rio entrar no mar, ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada que percorreu, para os cumes, as montanhas, para o longo caminho sinuoso que trilhou através de florestas e povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto, que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entrar no oceano é que o medo desaparece, porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas de tornar-se oceano." (Osho)
Marcos Oliveira Dias Vasconcelos, professor do Departamento de Promoção da Saúde da UFPB.
Muito bom ler um texto que celebra a vida, mesmo nesta hora inevitável.
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