22 dezembro 2014

Ladeiras [Julio Wong Un]

[o topo da ladeira]



Para Cecília Alayde Medeiros Mano, com gratidão.

uno no siempre hace lo que quiere
pero tiene el derecho de no hacer lo que no quiere
[Mário Benedetti in: Hombre preso que mira a su hijo]

Buscamos padrões, sinais que nos guiem e acalmem. De alguma maneira, arbitrária ou misteriosa, os encontramos. Pode ser qualquer taxonomia, qualquer classificação, alguma zoologia fantástica, um método dedutivo matemático, uma forma inicial da certeza ou da alegria da dúvida. Ou quem sabe, um paradoxo. E é nesses que eu sempre vivo.

Quero crer que a vida que me vive, que me acompanha - nos fazemos juntos, ela e eu - pode ser meditada, respirada e elevada em ladeiras. Ladeiras que andei. Uma vez, poucas vezes, ou muitas. Ladeiras que me marcaram de forma sensível - quer dizer que marcaram os sentidos e pelos sentidos.

Tem sido muitas. E sempre a mesma sensação de desafio amoroso. Como se uma mão de mundo se estendesse e falasse baixinho: é o tempo. Sobe.

Vou falar de umas poucas aqui. Especiais todas foram. Instantáneas ou perduráveis. São ainda. E serão. Basta fechar os olhos que elas estão lá, calmas, plenas de cheiros e cores, e ventinho fresco.

1991. Fui morar em Cuzco empurrado pelo amor. Seguindo a dúvida do amor. Perseguindo o beijo de aprendiz, seguindo intuição. Foi um tempo pleno. Total. Sem horário ou rotina. Feito de poemas colados uns aos outros. Um contínuo poético. Ano bom.

Depois de umas semanas em um hotel do Centro de Estudos onde fui trabalhar, consegui alugar um pequeno apartamento no final da Calle Suecia, uma longa rua que sobe, sobe e sobe partindo da Plaza de Armas de Cuzco. Subir até casa era desafio sempre. A ladeira era enganosa. Parecia leve no começo. Rua cheia de hotéis baratos e becos onde turistas, amantes e bandidos se protegiam ou, também, esperavam.

Cuzco, umbigo do mundo, existe a 3.400 metros sobre o nível do mar. O oxigênio sempre falta. E o frio e o vento eram bons aliados para me causar exaustão. Mas eu era tão feliz nesse esforço que, ao me jogar literalmente na cama no pequeno apartamento de paredes de barro e tinta branca de cal, eu sentia sempre felicidade profunda.

Outras formas de subir eram laterais - perpendiculares. Uma das ruas chamava-se Amargura. Era amargo e doce subir. Pecados eram pagos. E, se a noite fosse bondosa, novos eram criados, ao sabor de um beijo ou ao calor de um abraço.

1991. Cuesta San Blas. Meses depois de chegado a Cuzco eu já me sentia do lugar. Não era, claro, mas me sentia. Tinha amigos. A senhora que vendia os pães indígenas já sorria levemente para mim. Alguém já fazia piadas comigo. E eu namorava a pessoa que segui. Namoro bom e tumultuado. Aprendizado um pouco míope mas totalmente válido. Basta ver as fotos desses dois jovens no meio das ruinas incas, ou molhando os pés no Urubamba, o rio sagrado. Ou nas festas que os amigos ofereciam em casas deliciosas e simples, com uma paisagem deslumbrante. Valeu muito a pena arriscar e errar. Mas ao mesmo tempo acertar. Está ai a Paula, prova da transcendência teimosa e luminosa dos amores aprendizes.

Ah. Para chegar à casa de 7 angelitos eu devia subir ou a Cuesta San Blas - ladeira famosa e bem íngreme. Ou 7 culebras e depois uma escada de pedra bem puxada que levava direto à Rua dos 7 anjinhos.

2012. O Regis Venturini, hoje grande amigo, me levou a conhecer muitos lugares segredos de Porto Alegre. Um desses foi subir a ladeira da Rua Gen Auto. Ai que ladeira boa. Acabei quase desmaiado e feliz.

2013. Mas foi com Amélia Mano, que de novo me levou a essa ladeira (que vai até a Catedral e ao Teatro São Pedro) a maneira de teste e desafio - como tempos depois confessou rindo - que eu entendi o valor profundo que tem tido as ladeiras na minha vida. Algo assim como montanhas urbanas, formas de me entranhar com um lugar. Um beijo progressivo com as cidades ou as aldeias. Uma forma única - minha e de muitos - de dizer: estou presente. Ela disse, bem no finzinho da subida, quando eu já estava uns 10 metros a frente dela: pensei que não ia conseguir.

Eu nem me senti mexido nem ofendido. Só relembrei como desde sempre amei subir ladeiras. Chegar a cumes, olhar com alegria para trás, sentir o proprio corpo se expandindo.

Não sei se cheguei a falar ou só pensei: que bom ter subido esta ladeira contigo!

2014. Imaginei a ideia deste texto subindo a ladeira do Hospital São Vicente de Paulo. Ladeira curta e puxada. Este ano todo tenho subido essa ladeira. Doente. Sobrevivente. Abençoado. Iluminado. Decidido. Desanimado. Esperançoso. Fiz dezenas de procedimentos e consultas. Estive e não estive. Senti a ladeira e sua força. Ela me fez e me refez. Ainda o faz. E eu através dela agradeço a todos os que me amaram e cuidaram neste ano que acaba.

Foi assim com outras ladeiras: as de Santa Teresa no Rio de Janeiro; as de Bogotá ou Quito; as de Ouro Preto; as do Pelourinho em Salvador/Bahia; ladeiras em Atlanta, na Georgia; as ladeiras muito amadas de Cajamarca... sem mencionar as montanhas enormes, que acho que não lembram mais de mim mas que eu levo no coração. Ou as ladeiras atípicas de Barranco, o bairro boémio de Lima, minha eterna cidade.

O desafio é ir além a cada paso, de jeito desajeitado, de espera inesperada. E construir um amor que perdure como as memórias. Que se diga eterno e que muito dure.







[Julio Alberto Wong Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]

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