“BOA SORTE!”
Juliana conheceu Ademir há dez anos.
Ele vinha de um casamento conturbado, com ex esposa usuária de drogas. Perdeu
os dois filhos para a adoção de famílias estrangeiras. Família de origem,
desorganizada e desunida. Mas se apaixonaram e acharam que valia a pena ir
adiante. Juliana engravidou e teve Gabriel que teve um problema na hora do parto
e ficou com uma sequela neurológica importante. Gabriel tem oito anos, não
caminha, tem grandes olhos azuis e poucas vezes perde o bom humor.
Juliana dá conta de Gabriel
praticamente sozinha. Leva e traz para uma instituição pública de estímulo que
aguardou “na fila” por quase quatro anos para poder entrar. Lembro de quando me
disse que tinha conseguido a vaga. Estava maravilhada, sem pensar no tempo
perdido de espera, mas apostando no tempo e na esperança de avanços e melhoras.
E Juliana e Gabriel aguardam, sorrindo, o ônibus adaptado para cadeirantes que
sempre atrasa.
Gabriel tem uma rigidez e um espasmo muscular
intenso nos membros inferiores, tanto que fez uma fratura de quadril e sentiu,
por um tempo, muita dor. O traumatologista indicou uma cirurgia não só para
corrigir as sequelas da fratura, mas algumas outras cirurgias musculares que
melhorariam muito a qualidade de vida dele. Mas é preciso esperar e um ano já
se foi.
Para esses espasmos, Gabriel usou um
medicamento especial que era retirado, mediante processo, na farmácia especial
da Secretaria Estadual de Saúde. Certo dia, mandaram um documento pedindo que Juliana
se justificasse em relação ao medicamento, que o Estado estava revendo os
processos de medicamentos de alto custo. O conteúdo tinha uma linguagem
jurídica de quase “intimação” e Juliana pensou que teria de pagar por tudo que
já tinha usado. Teve insônia. Teve medo.
Tranquilizei Juliana. Fiz uma
justificativa em laudo bem detalhado. Relatei as dores da fratura, as
tentativas de outros remédios, sem sucesso. Idas e vindas. Burocracia. Tudo em
vão. O Estado não respondeu. Juliana seguiu comprando o remédio por conta
própria até que ele sumiu das farmácias. Como única opção, Gabriel está usando uma outra droga que alivia o espasmo, as dores, mas o deixa sonolento
durante o dia.
Ademir é “um aventureiro”. Durante os
dez anos de relação, ele teve muitos períodos distante: até 3 meses! Sempre
volta. Juliana sempre perdoa. Gosta dele e pensa nos filhos que ele perdeu na
vida, possivelmente em algum período de ausência. Pensa no amor que Gabriel tem
por ele e que ele tem por Gabriel. Não sabe bem onde vai Ademir. Diz que por
tempos, vai ver a família que mora longe. Mas sabe que já teve um filho com uma
mulher, um filho sem problemas, saudável...
Ademir quer ter mais filhos. Juliana
não se anima. Sabe que ele é instável e sabe do trabalho que passa com Gabriel,
sozinha. Ainda, ela quer “evoluir na vida”, quer estudar, terminar o ensino
médio, fazer faculdade de Serviço Social ou Psicologia. Sonho de toda vida: queria
muito, um dia, ser professora. Mas desistiu ao saber que a ex amante de Ademir
é professora, o que a fez ficar desencantada, “pegar nojo”.
Agora Juliana está ansiosa, triste,
pede desculpas por chorar. Ademir fez acordo com o patrão e saiu do emprego.
Não está mais com carteira assinada, não bate ponto, não tem mais vínculo. Está
livre. E quando fica livre sempre tem o risco de “sumir”. Vive, agora, de
pequenos serviços: está pintando um muro. Juliana dorme sobressaltada. Sabe que
já aconteceu. Ausência. Que pode acontecer novamente e já se prepara. Espera
que sempre existam muros para pintar.
Atendo Gabriel que grita meu nome e
sorri cada vez que me enxerga no ônibus, na rua, na recepção do posto de saúde.
Atendo Ademir, um homem que perdeu dois filhos por ausência e que tem um filho
que pouco conhece. É homem de estranhas asas de ir e vir, mas é Gabriel, o
filho que não anda, o filho que ele chora quando fala, tão grande o amor. Atendo
Juliana que adora ler os livros da igreja e histórias de pessoas especiais,
“histórias edificantes”, “exemplos de vida” me diz ela. Juliana faz faxina.
Juliana tem só 30 anos.
É manhã de sábado e caminho na rua
próximo ao parque. Um senhor de idade, cabelos brancos, se prepara para o dia
de trabalho. Roupa de palhaço, se pinta na calçada, vai para a feira. Vai
vender balas. Peço licença para bater uma foto e ele autoriza e arruma os
balões coloridos para aparecerem bem de frente, bem bonitos. Quando agradeço,
ele sorri e me diz: “Boa sorte!”. Por alguma razão, lembro de Juliana, Gabriel
e Ademir.
O que me faz lembrar? Não sei bem... Penso
que é essa ternura universal, sem nome, sem razão. O sol da feira da manhã de
sábado. A emoção de Ademir ao falar de Gabriel. Gabriel que sonha em andar em
2015. Juliana e sua incansável capacidade de cuidar, de esperar, de perdoar, de
amar e de acreditar. O sorriso do palhaço, velhinho, que se pinta em público
para vender balas e me deseja boa sorte. Sim, a vida deveria ser mais doce...
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