19 maio 2015

TEUS RISONHOS, LINDOS CAMPOS TÊM MAIS FLORES... [Maria Amélia Medeiros Mano]

Maria Amélia Mano

                Ela segue. Elza chega sempre com as mesmas queixas e as mesmas histórias que sempre me surpreendem e impressionam. Vida inteira de violências e perdas. Cada consulta, uma versão diferente. Mentiras? Não: confusões da memória. Invenções? Não: reinvenções, ressignificações, re-sentimentos. Fugas da realidade? Sim: todas... Porque a realidade é feita de dor e de toda dor se foge, se corre. Mas mesmo assim, para Elza, havia o sempre encontro.

                Nove, dez, onze filhos. Não sabe precisar. Tempos, idades, gestações, gerações, girações, infâncias. Pouco define.  Só sabe dos males no corpo. Essas indisposições que se queixa, essas que me deixa entre confusa, preocupada, curiosa, paciente e cuidadosa entre as falhas dos dentes em sorriso de cabeça baixa, entre as fendas da pele dos pés em passos lentos pelas ruas de barro da Vila Dique.

                Não criou mais de metade dos filhos, diz sem espera de julgamentos. Para onde foram? A mãe, tias, os pais das crianças, o presídio, o tráfico, o conselho tutelar, todos “deram conta”, menos Elza. Duas adotadas por diferentes famílias. E mostra as fotos das meninas que têm outras mães. E se admira da beleza delas. E confessa que as espreita e se orgulha. Não sente culpa. Não sente medo. Não fala que sente falta, mas sorri quando fala de todos, de todas, dos muitos que não sabe contar e que perdeu. Mas não sei se sabe que perdeu.

                E me diz que precisa falar com a assistente social, que já falou por mais de uma dezena de vezes sobre o mesmo assunto: João. João é o último. João é o menor. João que também perdeu e que também espreitou com “outra mãe”. João que visitou pela última vez em um grande hospital. Estava muito doente, me diz. E, por causa do tratamento, perdeu os cabelos, ficou carequinha. Mas não viu mais depois. Acha que teve alta, que foi embora com a família adotiva.

                Veio pela dor de sempre e porque, dessa vez, viu João. Tem certeza. Viu na televisão, entrando com a seleção brasileira em um estádio de futebol. Estava de costas, mas era ele sim. Estava correndo, cheio de cabelos, com a camisa verde amarela. Era um dos muitos meninos que entra com o time e canta o hino nacional! Assistia aos jogos da copa, todos, esperando pelos meninos que entravam. Esperando o hino. Esperando João.

                Elza sai e vou direto falar com a assistente social. Conto a história já conhecida. Desta vez tem um elemento novo: a copa, o hino, os meninos em campo. A colega de equipe me adverte que há sempre uma história nova e uma visão de João. Que já buscou referências dele e não achou e que João tinha uma doença grave e possivelmente não está vivo. No fundo sei que a assistente social está certa. No fundo, talvez, Elza também saiba. Elza, que nem sabe cantar o hino. Elza, que nem sabe ler. 

                Elza que se vai. A copa que passa. E eu sei que Elza vai voltar. Vai voltar com as mesmas queixas da vida que não muda. Vou dar analgésico que alivia o corpo. Vou dar atenção e escuta que alivia a alma. Vai me contar outra novidade que esta sim, é sempre nova: o novo lugar onde viu João. Vai pedir ajuda para procurar. Vou acreditar e compartilhar as esperanças de alguém que não chora por perder, que se contenta em observar, de longe, invisível, perdida em olhar e sorriso. Não saber é mais doído que não ter?

                Elza se vai. Prometo sempre ajudar. Mentira? Não: confusões que me dedico a partilhar. Invenções? Não: reinvenções e ressignificações e sentimentos que também são meus. Fugas da realidade?  Sim: todas... Porque o cotidiano é feito de sonhos que precisamos escutar para caminhar, acreditar para sobreviver. Entender que, para muitos, a verdade é uma crueldade desnecessária e que João, o único que  Elza desconhece o paradeiro, deve estar em lugar especial que, no fundo, no fundo, também quero encontrar.


Foto: Flor entre os escombros - Oficina de Fotografias com moradores da Vila Dique.



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