Maria Amélia Mano
Ela segue. Elza chega sempre com
as mesmas queixas e as mesmas histórias que sempre me surpreendem e
impressionam. Vida inteira de violências e perdas. Cada consulta, uma versão
diferente. Mentiras? Não: confusões da memória. Invenções? Não: reinvenções, ressignificações,
re-sentimentos. Fugas da realidade? Sim: todas... Porque a realidade é feita de
dor e de toda dor se foge, se corre. Mas mesmo assim, para Elza, havia o sempre
encontro.
Nove,
dez, onze filhos. Não sabe precisar. Tempos, idades, gestações, gerações,
girações, infâncias. Pouco define. Só
sabe dos males no corpo. Essas indisposições que se queixa, essas que me deixa entre
confusa, preocupada, curiosa, paciente e cuidadosa entre as falhas dos dentes
em sorriso de cabeça baixa, entre as fendas da pele dos pés em passos lentos
pelas ruas de barro da Vila Dique.
Não
criou mais de metade dos filhos, diz sem espera de julgamentos. Para onde
foram? A mãe, tias, os pais das crianças, o presídio, o tráfico, o conselho
tutelar, todos “deram conta”, menos Elza. Duas adotadas por diferentes
famílias. E mostra as fotos das meninas que têm outras mães. E se admira da
beleza delas. E confessa que as espreita e se orgulha. Não sente culpa. Não
sente medo. Não fala que sente falta, mas sorri quando fala de todos, de todas,
dos muitos que não sabe contar e que perdeu. Mas não sei se sabe que perdeu.
E
me diz que precisa falar com a assistente social, que já falou por mais de uma
dezena de vezes sobre o mesmo assunto: João. João é o último. João é o menor.
João que também perdeu e que também espreitou com “outra mãe”. João que visitou
pela última vez em um grande hospital. Estava muito doente, me diz. E, por causa
do tratamento, perdeu os cabelos, ficou carequinha. Mas não viu mais depois.
Acha que teve alta, que foi embora com a família adotiva.
Veio
pela dor de sempre e porque, dessa vez, viu João. Tem certeza. Viu na
televisão, entrando com a seleção brasileira em um estádio de futebol. Estava
de costas, mas era ele sim. Estava correndo, cheio de cabelos, com a camisa
verde amarela. Era um dos muitos meninos que entra com o time e canta o hino
nacional! Assistia aos jogos da copa, todos, esperando pelos meninos que
entravam. Esperando o hino. Esperando João.
Elza
sai e vou direto falar com a assistente social. Conto a história já conhecida.
Desta vez tem um elemento novo: a copa, o hino, os meninos em campo. A colega
de equipe me adverte que há sempre uma história nova e uma visão de João. Que
já buscou referências dele e não achou e que João tinha uma doença grave e
possivelmente não está vivo. No fundo sei que a assistente social está certa.
No fundo, talvez, Elza também saiba. Elza, que nem sabe cantar o hino. Elza,
que nem sabe ler.
Elza
que se vai. A copa que passa. E eu sei que Elza vai voltar. Vai voltar com as
mesmas queixas da vida que não muda. Vou dar analgésico que alivia o corpo. Vou
dar atenção e escuta que alivia a alma. Vai me contar outra novidade que esta
sim, é sempre nova: o novo lugar onde viu João. Vai pedir ajuda para procurar. Vou
acreditar e compartilhar as esperanças de alguém que não chora por perder, que
se contenta em observar, de longe, invisível, perdida em olhar e sorriso. Não
saber é mais doído que não ter?
Elza
se vai. Prometo sempre ajudar. Mentira? Não: confusões que me dedico a
partilhar. Invenções? Não: reinvenções e ressignificações e sentimentos que
também são meus. Fugas da realidade? Sim:
todas... Porque o cotidiano é feito de sonhos que precisamos escutar para
caminhar, acreditar para sobreviver. Entender que, para muitos, a verdade é uma
crueldade desnecessária e que João, o único que Elza desconhece o paradeiro, deve estar em
lugar especial que, no fundo, no fundo, também quero encontrar.
Foto: Flor entre os escombros -
Oficina de Fotografias com moradores da Vila Dique.
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