Maria Amélia Mano
Há de surgir
Uma estrela no céu
Cada vez que você sorrir
Há de apagar
Uma estrela no céu
Cada vez que você chorar
O contrário também
Bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar
Quando a lágrima cair
Ou então
De uma estrela cadente se jogar
Só pra ver
A flor do seu sorriso se abrir
Gilberto Gil
A
família toda devia mexer em ninho de tico-tico. O mais certo, se diz, era que contassem
estrelas para, na mesma medida, nascerem as sardas no rosto. E são todos
sardentos, de sorriso tímido encoberto pelas mãos e de olhos que se baixam
quando tento olhar. E são todos sedentos de atenção e de um tempo para falar. Nada
é sem razão para esses pequenos mundos espirrados de marrom claro e escuro,
dispersos em bochechas que pouco se mexem com risadas.
Pequeno
mundo da mãe, Noite, a dona dos pequenos pontinhos que três de três filhos
herdaram. Mundo que sofre com o marido que bebe todos os dias e nem sabe mais o
que diz, o que faz, o que é. Ele não bate, não grita, não ameaça. É carinhoso
com as crianças, trabalhador e companheiro quando acorda. Mas nem sempre acorda
do sono profundo depois da cachaça com alho que diz que é boa para garganta.
E
Noite, já sem esperanças, vem na consulta com a filha do meio, Brisa, decidida
a sair dessa vida de embriaguez, desesperança e ressacas. Diz que vai deixar
tudo. Vender a casa. Dividir o dinheiro e voltar a morar com a mãe no interior.
Noite diz que cansou e enquanto faço a prescrição do antidepressivo que ela usa
há meses, ela segue falando dos planos e das decisões. Brisa olha entre
assustada e calada, como sempre. E se encosta em Noite.
Brisa
sorri nada. Tem os dentinhos da frente estragados, mas já consegui revisão da
dentista. Vem sempre tão arrumadinha e cheirosa que sempre a pego pela mão e
vou passeando pelos corredores da unidade, mostrando, orgulhosa, que nem mãe. “Olha
como ela é linda”. “Olha as estrelinhas no rosto”. É a “minha família sardenta”
que conheço os jeitos e lágrimas. Conheço alguns segredos e as almas penadas
que assombram os sótãos escondidos.
“Ele
disse que ia para o hospital e queria que eu cuidasse dele”, me diz Noite e
segue: “Eu disse que não ia cuidar nada, porque tenho os filhos, quem é que
cuida deles?”. E nesse instante, Brisa começa a falar como adulta, olhando para
a mãe: “Não mãe! Tu faz a comida de manhã e me deixa com o Vento e o Pranto e
pode ir cuidar do pai!”. Intervenho dizendo que nada disso ainda é real e que
as duas não podem sofrer antes de acontecer, seja o que for.
Noite
segue sem ver os olhos pequenos de Brisa, ainda menores de espanto. Me
diz: “todo mundo fala que se meus filhos
continuarem vivendo assim, vão ficar revoltados, não quero filho meu
revoltado!” E Brisa novamente fala, pergunta: “o que é revoltado?”. “É ser ruim!”,
responde Noite quase que de imediato. E novamente entro na conversa dizendo que
aquele assunto merece mais cuidado e olho firme para Noite que me entende e
silencia.
“Minha
família” entre movimentos do ar e calma de chão: Pranto tem 13 anos, é calado,
gosta de igreja e skate e sonha em ser fazendeiro. Vento tem 2 anos e fui eu
que ouvi os batimentos do coração dele pela primeira vez, junto com Noite e Pranto,
com o sonar velho apertando a barriga-cheia de confetes, confeitos, de Noite. Noite
tem 30 anos, é da zona rural e diz que foi “danada”, “quando jovem”. Brisa...
Hoje,
a mão de Brisa estava mais leve, mais macia, mais fácil de fugir da minha. Sinto.
Ela toda mais leve, sopro, parece voar a qualquer instante. O instante em que
ficou adulta aos 7 anos. O instante em que sente dor e medo. O instante em que
me despeço com aperto no peito, só querendo que o mundo fosse ao contrário.
Esperança que Brisa sorrisse mais e contasse mais as sardas do rosto para fazer
nascer mais estrelas no céu.
Meu jeito singelo de homenagear... Os nomes são fictícios e retirados
da música Travessia, poesia de Fernando Brant que se foi dia 12 de junho.
Também é co-autor de Maria Maria e Canção da América.
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