16 junho 2015

FEITO DE BRISA, VENTO, PRANTO, NOITE E ESTRELAS

Maria Amélia Mano

Há de surgir
Uma estrela no céu
Cada vez que você sorrir
Há de apagar
Uma estrela no céu
Cada vez que você chorar

O contrário também
Bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar
Quando a lágrima cair
Ou então
De uma estrela cadente se jogar
Só pra ver
A flor do seu sorriso se abrir

Gilberto Gil

                A família toda devia mexer em ninho de tico-tico. O mais certo, se diz, era que contassem estrelas para, na mesma medida, nascerem as sardas no rosto. E são todos sardentos, de sorriso tímido encoberto pelas mãos e de olhos que se baixam quando tento olhar. E são todos sedentos de atenção e de um tempo para falar. Nada é sem razão para esses pequenos mundos espirrados de marrom claro e escuro, dispersos em bochechas que pouco se mexem com risadas.

                Pequeno mundo da mãe, Noite, a dona dos pequenos pontinhos que três de três filhos herdaram. Mundo que sofre com o marido que bebe todos os dias e nem sabe mais o que diz, o que faz, o que é. Ele não bate, não grita, não ameaça. É carinhoso com as crianças, trabalhador e companheiro quando acorda. Mas nem sempre acorda do sono profundo depois da cachaça com alho que diz que é boa para garganta.

                E Noite, já sem esperanças, vem na consulta com a filha do meio, Brisa, decidida a sair dessa vida de embriaguez, desesperança e ressacas. Diz que vai deixar tudo. Vender a casa. Dividir o dinheiro e voltar a morar com a mãe no interior. Noite diz que cansou e enquanto faço a prescrição do antidepressivo que ela usa há meses, ela segue falando dos planos e das decisões. Brisa olha entre assustada e calada, como sempre. E se encosta em Noite.

                Brisa sorri nada. Tem os dentinhos da frente estragados, mas já consegui revisão da dentista. Vem sempre tão arrumadinha e cheirosa que sempre a pego pela mão e vou passeando pelos corredores da unidade, mostrando, orgulhosa, que nem mãe. “Olha como ela é linda”. “Olha as estrelinhas no rosto”. É a “minha família sardenta” que conheço os jeitos e lágrimas. Conheço alguns segredos e as almas penadas que assombram os sótãos escondidos.

                “Ele disse que ia para o hospital e queria que eu cuidasse dele”, me diz Noite e segue: “Eu disse que não ia cuidar nada, porque tenho os filhos, quem é que cuida deles?”. E nesse instante, Brisa começa a falar como adulta, olhando para a mãe: “Não mãe! Tu faz a comida de manhã e me deixa com o Vento e o Pranto e pode ir cuidar do pai!”. Intervenho dizendo que nada disso ainda é real e que as duas não podem sofrer antes de acontecer, seja o que for.

                Noite segue sem ver os olhos pequenos de Brisa, ainda menores de espanto. Me diz:  “todo mundo fala que se meus filhos continuarem vivendo assim, vão ficar revoltados, não quero filho meu revoltado!” E Brisa novamente fala, pergunta: “o que é revoltado?”. “É ser ruim!”, responde Noite quase que de imediato. E novamente entro na conversa dizendo que aquele assunto merece mais cuidado e olho firme para Noite que me entende e silencia.

                “Minha família” entre movimentos do ar e calma de chão: Pranto tem 13 anos, é calado, gosta de igreja e skate e sonha em ser fazendeiro. Vento tem 2 anos e fui eu que ouvi os batimentos do coração dele pela primeira vez, junto com Noite e Pranto, com o sonar velho apertando a barriga-cheia de confetes, confeitos, de Noite. Noite tem 30 anos, é da zona rural e diz que foi “danada”, “quando jovem”. Brisa...   
          
                Hoje, a mão de Brisa estava mais leve, mais macia, mais fácil de fugir da minha. Sinto. Ela toda mais leve, sopro, parece voar a qualquer instante. O instante em que ficou adulta aos 7 anos. O instante em que sente dor e medo. O instante em que me despeço com aperto no peito, só querendo que o mundo fosse ao contrário. Esperança que Brisa sorrisse mais e contasse mais as sardas do rosto para fazer nascer mais estrelas no céu.



Meu jeito singelo de homenagear... Os nomes são fictícios e retirados da música Travessia, poesia de Fernando Brant que se foi dia 12 de junho. Também é co-autor de Maria Maria e Canção da América.



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