06 outubro 2015

JESUS DA NILO



Maria Amélia Mano

Para Porto Alegre



A Aldeia, quanto mais pequena, mais carece de um louco.
Como se por via desse louco se salvassem, os restantes, da loucura.

Mia Couto

                Morre assassinado em um assalto, o dono da antiga padaria da Avenida Getúlio Vargas, no Bairro Menino Deus. Por ser generoso e doar pães e doces para os moradores de rua do bairro, eles se compadecem. Não vão ao velório ou ao enterro, mas escrevem uma carta: “nós moradores de rua gostaríamos muito de mandar um grande abraço e mil pêsames para uma pessoa que sempre esteve junto a nós muito obrigado por tudo e que Deus o tenha, descanse em paz. Assinado nós. Ana Paula S. da Silva”.



             No mês passado, Jesus da Nilo morreu. Jorge Luis Cézar Varreira, de batismo. Jesus pela barba, pelos olhos claros, pela magreza, pela sabedoria e bondade que diziam ter. Por ser popular e sábio conselheiro, tinha mais de dois mil amigos no facebook. Contava histórias e adorava chocolate. “Da Nilo” porque era morador de rua há mais de 20 anos, na Avenida Nilo Peçanha, na Bela Vista, bairro nobre de Porto Alegre. Recusou abrigo várias vezes. Conhecia cada morador do bairro por nome e sobrenome.



           Zé da Folha é um senhorzinho de mais de 70 anos, analfabeto, que chegou a Porto Alegre ainda menino, com uma tia, do interior, de caminhão. Foi vendedor de jornais e engraxate. Seu maior talento é tocar músicas usando a boca e uma folha de jambolão colhida no Parque da Redenção, mas sua paixão é o centro. Seu repertório é de canções populares e sua consagração, por mais de nove anos, foi ser responsável pela abertura do espetáculo Tangos e Tragédias, no Theatro São Pedro, o mais querido e tradicional espaço cultural do estado. 



           Essas e outras tantas histórias me fazem ter esperança em uma cidade que, hoje, sente medo. Se a Estátua Viva de Porto Alegre tem mais de 11 mil curtidas no facebook e ainda, em multidão, fazemos piquenique noturno no maior e mais central parque da cidade é porque acreditamos que essas ruas, essas esquinas, essa cidade tem alma. E se ela tem alma e não é pequena, lembrando Fernando Pessoa, então tudo vale a pena. Vale a pena a poesia no ônibus, no trem e nos muros. Vale a pena o desenho da ternura, da leveza...



           Vale a pena a prosa do Veríssimo, filho. Vale O Tempo e o Vento do Veríssimo, pai, no Centro Cultural, na Rua da Praia e a chuva na feira do livro na Praça da Alfândega. Vizinho de rua, vale Quintana na Esquina dos Cataventos e a música de graça no meio dos arcos. Vale a pena a nossa tristeza, mas vale a pena a nossa alegria e a nossa esperança em cada pôr de sol que o Guaíba nos oferece. E se vale a pena cada sol, cada rio, cada canção, cada vida, tanta vida, vale a pena a busca dessa alma e desse coração perdido em cada medo de janelas fechadas.




           Mas, sim, depois dessa minha declaração de amor pela cidade em que vivo e vivo a pé, descobrindo cada cantinho, só me resta dizer o que não vale muito a pena: o calorão de dezembro! Quando chamamos esse canto de Brasil de Forno Alegre. Mas, veja, que o calor alivia com sorvete de milho na esquina da Rua da República com José do Patrocínio. No copinho, por favor, que ele derrete e une os dedos das mãos em meladeira doce e amarela que nem os ipês da minha rua, na primavera antecipada, deixando o chão em tapete de sonhar dia bom. 


Fotos - Rua da República, na Cidade Baixa, onde moro: cartazes nos muros e notícias de jornais lidas tomando café com broa de milho com erva doce em padaria, quase esquina com a Avenida João Pessoa.

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