Maria Amélia Mano
A todos os que se
tornam crianças, depois de adultos.
Janeiro
de 2012. Ela e a mulher. Ela vinha desde Buenos Aires até Curitiba, onde vivia
com esposo e filhos. Eram 29 horas no total. Imigrante, negra, cabelos longos e
cuidadosamente trançados. Foi passar o fim de ano com imigrantes do mesmo país
de origem, na Argentina. Rever amigos, ajudar irmãos de raça, pátria e sina. A
outra, a mulher, companheira de viagem, entrou brigando porque perdeu o
primeiro ônibus. Tinha ido passar as festas com amigos em Porto Madero. Pensou
em festa mais adulta já que estava prestes a fazer 40 anos.
Os
nomes. Poderia ser Guimarães Rosa ou García Márquez. Histórias, versões,
ficções, invenções. Personagens cujos nomes já dizem de suas missões em páginas
de surpresas e encantamentos. Mas dessa vez é Mia Couto e a vida vivida. Sim,
personagens fictícios, personagens reais. Gente que misturo com gente. Gente
ingrediente, gente tempero e temperada de cotidiano, prosa e poesia, açúcar e sal,
um pouco de verdade, um pouco de mentira. Que é dessa mistura que se fazem os
dias.
Viagem.
Fronteira. Elas fizeram amizade. Sentaram juntas. Conversaram. Dormiram juntas.
Estavam exaustas. A mulher havia virado adolescente nas festas. Passou os últimos
minutos de 2011 na garupa de uma moto pelas avenidas largas de Buenos Aires. Desceram
juntas nas paradas de madrugadas. Fala fácil. Conversa boa. Sorriso largo e simples. Ela comia pouco ou
comia nada. A mulher pensou em oferecer algo, mas temeu magoar. Por ser negra,
por ser da África, não era razão de passar necessidades...
Dilema
é a negra lavadeira de brancos vestidos de noiva. Amadalena, a avó que ama e
ensina a amar. Maria Metade a que viveu entre meio e metade, no meio do
caminho, com meia saudade. Erraram o nome no cartório: Em vez de Djanira, saiu
Djarina e a vida seguiu cheia de erros e enganos. Uma letra não era nada e era
tudo. Ainda há o Ervaristo e Maria Pedra. Maria Terra tem os olhos cor de água.
E tem a Estrelua, a Maria Pilão e Seu Flor de Lis que, independente de ser
menino ou menina, teria nome de flor.
Viagem.
E seguia o ônibus entre pampa e circunstância. Entre a sonolência e a
curiosidade de se conhecerem e dividirem estrada. Ela falou à mulher da dor de
ver os seus irmãos em dificuldades, na Argentina. Moravam muitos amontoados.
Contou que lá, havia preconceito e crise. Baixos salários e até fome. No
Brasil, encontrou emprego e lar para a família. Assim, triste e compadecida, deixou
tudo o que tinha para eles. Voltava para casa sem dinheiro mas com paz na alma.
Nomes
que são homenagens, nomes que são desejos, nomes que são culpas, nomes que são
fardos, nomes que são parceiros, nomes que são sinais, nomes que são caminhos, aventuras, aconchegos.
Com eles seguimos e somos chamados e lembrados. Assinamos e somos desenhados,
escritos, designados, impedidos, humilhados ou homenageados. Mais do que nós,
nossos nomes carregam nossos feitos muitas vezes desde antes de existirmos e,
certamente, até depois que nos formos dessa vida.
Chegaram
as duas em Porto Alegre, após 17 horas entre sono, sonho e histórias. A mulher que
ficaria na cidade, onde vivia, ofereceu dinheiro e o lanche que sobrou do
caminho entre constrangida e temerosa, mas com sincera vontade de ajudar. Ela
aceitou. Ambas sorriram e a mulher se sentiu culpada de não ter ajudado no
caminho. Até então não haviam se apresentado. O nome dela: Esperanza. As duas
se despediram. Desejaram uma a outra, boa sorte, bom ano. O ano recém começava.
Ela ainda tinha 12 horas de chão.
Mas
a ideia de falar de nomes é mesmo a de falar das histórias e das vidas. Quem
poderia se arriscar a dizer quem desses personagens citados são reais ou
inventados? Dilema, Amadalena, Maria Metade, Djarina, Ervaristo, Maria Pedra,
Maria Terra, Estrelua, Maria Pilão e Flor de Lis? E Esperanza? Não vale buscar
referências! E digo: são todos reais e são todos inventados! Como nós, parte do
que somos, parte do que acreditamos, parte do que desejamos ser, parte do que
deixamos de ser e nos tornamos, a cada dia... É verdade e é invenção. Reinvenção.
Passei
a primeira viagem do ano embalada pela voz negra de uma mulher linda e generosa
chamada Esperança. Por isso, tive a certeza de que seria um ano especial e foi.
Comecei adulta e lá, na garupa da moto, virei adolescente. Na viagem, senti a
magia de uma palavra, de uma história, de um nome. Fiz 40 anos. Comecei a acreditar em nomes, pessoas,
histórias e viagens mágicas. O tempo passou e o tempo voltou na estrada. Fui
enfeitiçada. Na fronteira, no caminho, no sono partilhado, virei criança e
hoje, acredito em fadas de verdade...
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