03 novembro 2015

DO BARRO


Maria Amélia Mano


                Estou em uma feira de artistas jovens e talentosos. Livres, vendendo suas próprias produções: gravuras, ilustrações, caderninhos artesanais, pequenas esculturas de papel, carimbos... Ateliê da prefeitura, lugar de buscas e encontros, boas lembranças. Caminho entre os olhares e criações. Vejo saco de papel de embrulho de artista oferecendo ilustração para espaços vazios. Pensamento longe, longe. Desencantos recentes que acontecem, vez por outra e com todo mundo que escolhe ficar nesse lugar pouco protegido, a assistência.

                A “ponta”, suscetível às modas, novas tecnologias, estratégias, dispositivos, instrumentos, ferramentas e outros nomes que inventam para dizer o que devemos fazer a partir de números, desejando atingir números, óbvio. A quantidade prova a nossa competência, diminui nosso prejuízo já que a consulta ambulatorial paga muito menos que qualquer outro procedimento hospitalar. Assim é que, como hoje, uma vez, me desencantei. Cansei. Mas não me cansei das pessoas, das histórias. Cansei da estrutura, da gestão e do desrespeito.    
          
                Como números, escalas, metas, dados, indicadores, tabelas, planilhas, fluxos e rotinas são maneiras de controle e, por assim dizer, maneiras de organizar, significa que tudo isso junto reunido, deseja o impossível: medir e prever! Ora, a cada vez que um agente comunitário percorre seu território atualizando dados, ele chega ao fim e já precisa recomeçar. Gente mudou, gente nasceu, gente casou, gente fugiu, gente morreu, gente separou ou, simplesmente, trocou de casa. Nenhum dado é fidedigno. Nenhum número é absoluto, estático.

                Estou falando, obviamente, de uma população vulnerável, violenta, submetida a exclusões históricas e com “dupla carga”, como “eles”, os epidemiologistas, chamam. População jovem com doenças infectocontagiosas e população idosa com doenças crônicas não transmissíveis. Daí tem que ter consulta sequencial e coletiva. Tem que ter um monte de coisas que não fazemos e obviamente, o que fazemos, é sempre insuficiente. Vulnerabilidade e sofrimento não é justificativa. Hoje, isso ainda me afeta. Mas, mais jovem, doía mais.

                Mas, sigo esperançosa, apesar dos discursos matemáticos, não desvalorizando os números, mas relativizando. Dados são essenciais. Mas dá tristeza quando há desprezo pelo que não tem cálculo certo. E há 10 anos assim foi. “Desalentei” e fiz vestibular para Artes Plásticas. Sonho antigo retomado em tempo sempre possível. Buscava menos amarras, menos conceitos, menos regras. Mais criação. Mas eis que me deparo com vaidades e verdades tão rígidas quanto as que já conhecia. Uma vez, em uma feira literária, vi quase mesmo com acadêmicos de Letras.

                Ora, se na poesia e na arte há “caixinhas” fechadas, o que esperar da Medicina? Daí, entendo que não são as ciências, mas as pessoas e como pessoas, subvertemos, boicotamos e daqui e dali, sobrevivemos com o que nos é essencial. Trabalhamos com exceções, as que fogem e saem dos planos e planilhas. Situações instáveis e não mensuráveis. Ao menos, parte do que somos e fazemos, parte do que produzimos de verdadeiro, enquanto cuidado. Segue o mundo com intensa necessidade de nos “contar”, reduzindo o que somos e seguimos, a passos incertos.

                Um ganho valioso de todo o desalento foi ter entrado, com o professor da faculdade e colegas, em uma sala de cerâmica do ateliê da prefeitura em uma disciplina que se propunha a percorrer os espaços públicos de arte. O professor do local falou da argila, do barro, do ofício do ceramista de transformar o produto da decomposição, o “fim de tudo” em algo belo e/ou utilitário. Ofício milenar. Material que não cessa porque é sempre renovado. Material mágico e vivo. E, no jeito de contar os jeitos do barro, o professor lambeu a argila que estava na mesa.

                Vi o assombro dos colegas e professor perante a cena da “lambida”. Mas eu amei. Era isso que eu queria, o inusitado, o revolucionário do mais sujo, simples e primitivo. Larguei o curso e segui em aulas de cerâmica com esse professor no ateliê. Foram três anos de surpresas. O barro, se não amassado ou modelado corretamente, racha quando seco, racha quando queima. Precisa manter úmido. Precisa cuidar. E diminui no “descanso” e no forno. Exige paciência o tempo inteiro. E é sujeira, pele das mãos secas, unhas sujas. É fogo, terra, ar e água...

                Distâncias, horários, outras urgências e acabei “evadindo”. Passa a vida e eu sempre espiando a sujeira boa que a lama vermelha faz nas mãos e na alma. Passam mais de cinco anos. Volto à feira de arte do ateliê da prefeitura. Pensamento longe e volta, sorri ao ver meu antigo professor de cerâmica! Nos abraçamos e falamos dos anos passados. Encontramos o mesmo ceramista peruano. Visitamos o mesmo quilombo em Alagoas. Perdemos e ganhamos coisas. Ele abriu a sala antiga das aulas para mim. Vazia. Cheiro de terra. Deu arrepio e água nos olhos.

                Na feira, olho novamente o pacote que oferece ilustração para espaços vazios. Achei terno e poético. Quantos vazios poderiam ser desenhados? Quantas ausências poderiam ser ilustradas? Um dia, tapei vazios com o barro amassado nas mãos. Ainda, hoje, penso no quanto ainda há vazios dolorosos, os tais desalentos que ora voltam. Mas, na minha sempre busca pelo essencial e mais simples, acredito na fuga para o que um dia fomos e um dia voltaremos a ser. E sinto, de olhos fechados, o sabor de terra na ponta da língua. Alma, lama, feita de barro.

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