01 dezembro 2015

CONSELHO


Maria Amélia Mano

Para vó Cecília

Deixe de lado esse baixo astral
Erga a cabeça enfrente o mal
Agindo assim será vital para o teu coração
É que em cada experiência se aprende uma lição
Eu já sofri por amar assim
Me dediquei mas foi tudo em vão
Pra que se lamentar
Se em tua vida pode encontrar
Quem te ame com toda força e ardor
Assim sucumbirá a dor
Tem que lutar
Não se abater
Só se entregar
A quem te merecer
Não estou dando nem vendendo
Como o ditado diz
O meu conselho é pra te ver feliz

Almir Guineto

                Noite de quinta. Sento com amigos na calçada de uma esquina e a cerveja mais gelada e de bom preço passa de mão em mão. Falamos dos projetos e desistências, insistências. Uma fala me toca. Talvez óbvio, mas que óbvio não se torna valioso na hora certa? Um parceiro explica que tudo depende do olhar. Que se pode olhar para o pior, para as dificuldades que são muitas. Mas pode se olhar para as belezas, as pequenas recompensas que aparecem. Demoram, mas chegam. Olhar é uma questão de escolha.

                Em um curso, na noite seguinte, sexta, assisto a um documentário sobre o aborto. Uma colega faz uma referência ao médico do filme que “como sempre” comete erros. Fico quieta. “Como sempre”, repito para mim mesma. Penso e sequer discuto. Menina de ar moderninho, cabelos coloridos. Ela não sabia que eu era médica. Resolvi, por preguiça, deixar que ela discursasse, que desse suas razões e verdades para além do documentário. Mas para aquém do que eu esperaria de alguém aparentemente sem ideias tão rígidas.

                Sábado e vou para casa da mãe, em Pelotas. Feriado na segunda. Família. Aconchego. Faz frio e chove. Passo tempinho deitada no sofá. Durmo de sonhar e é sempre sonho bom. Planejamos café em Porto Alegre enquanto ela faz consertos nas minhas roupas. Televisão. Cobertor. Chocolate. Rapa de bolo no liquidificador. Meu pai senta na calçada e sei que está fumando um cigarro. Mais do que deveria nos seus quase 80 anos. Mas também sonha e tento pensar que é algo bom.

                Programa popular da Regina Casé que foi gravado em um hospital de câncer infantil. Imagens bonitas. Médica humana e especial que construiu lugar humano e especial. Crianças lindas. Notícia de um outro lugar: UTI neonatal de uma outra cidade. Médica estudando formas de “aconchegar” os prematuros. Usando redinhas nas encubadouras para colocar os bebês. Pesquisando de que jeito deve ser a melhor rede para proporcionar o maior contato, a melhor posição. Quando fala dos pequenos, a médica se emociona.

                Assisto a um documentário sobre Nise da Silveira. Médica corajosa que inovou, com arte e até com animais de estimação, o cruel tratamento das doenças psiquiátricas do início do século passado. Foi presa na ditadura de Getúlio junto com Graciliano Ramos e Olga Benário Prestes. E assistindo a tantas histórias e exemplos, lembro da menina moderninha de cabelos coloridos que repetia um “como sempre” para falar da medicina... Sim, novamente, olhar é uma questão de escolha e é uma pena que se escolha o pior. 

                Noticiário sensacionalista sobre um homem que é flagrado furtando um celular. Pessoas começam a bater e chutar. Um grupo de passantes faz um cordão de isolamento, chamam a polícia e tentam controlar os outros que, enraivecidos, gritam: “lincha!”. A televisão, em sua seleção macabra, faz questão de mostrar os rostos alterados, os gritos de violência. Mas também, menos, mas com atenção, mostra a luta dos que fizeram o cordão de isolamento para que o homem não fosse machucado. Estes se expuseram, se arriscaram e até foram agredidos.

                É feira do livro na praça. Caderninhos desenhados. Doce e café quente e forte. Neblina fria. Eu e a mãe de braços dados. Tia nos encontra na rua antiga e diz o quanto estamos parecidas. É música no mercado. Samba de raiz. Nós nos sacudimos e cantamos a letra simples. A mãe prefere músicas que falam de alegria. A mãe sabe olhar e olha sempre o melhor. Estou aprendendo, subvertendo a tudo o que me empurra a olhar para o “como sempre”, para os que gritam “lincha!”, para o cigarro que mata aos poucos, sem negar o que há de sombrio em tudo.

                Sim, tia, estamos ficando parecidas, eu e a mãe, e estou ficando melhor que antes. Ficando como ela, que sempre zombamos que era a Poliana do livro. Também eu, estou aprendendo a escolher o olhar. Olhando para as médicas que fazem um trabalho excepcional, para as pessoas que salvaram uma vida com seus próprios corpos, para o sonho do pai e para a festa curta do samba de letra alegre que nos faz dançar no mercado público, juntas. Assim, me sinto mais tranquila e esperançosa em meio a falas de catástrofes e crises.

                Volto para casa, com gostinho de carne de panela com batatinha, arroz de forno, chocolate derretido na banana, alguns retalhos e linhas da máquina de costurar e uma imensa admiração por quem sempre me ensina. Que elogio e que orgulho saber que estou a cada dia mais parecida com a mãe, sempre linda. Estou começando a ficar bonita. Demora. Mas, na alma, por dentro, é que a gente enfeita mais com a estrada. O tempo que, dizem, nos traz rugas, dores e grisalhos, é o que nos enfeita mais nessa vida. Jogo do Contente...
               




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