Maria Amélia Mano
Para vó Cecília
Deixe de lado esse
baixo astral
Erga a cabeça
enfrente o mal
Agindo assim será
vital para o teu coração
É que em cada
experiência se aprende uma lição
Eu já sofri por amar
assim
Me dediquei mas foi
tudo em vão
Pra que se lamentar
Se em tua vida pode
encontrar
Quem te ame com toda
força e ardor
Assim sucumbirá a dor
Tem que lutar
Não se abater
Só se entregar
A quem te merecer
Não estou dando nem
vendendo
Como o ditado diz
O meu conselho é pra
te ver feliz
Almir Guineto
Noite
de quinta. Sento com amigos na calçada de uma esquina e a cerveja mais gelada e
de bom preço passa de mão em mão. Falamos dos projetos e desistências,
insistências. Uma fala me toca. Talvez óbvio, mas que óbvio não se torna
valioso na hora certa? Um parceiro explica que tudo depende do olhar. Que se
pode olhar para o pior, para as dificuldades que são muitas. Mas pode se olhar
para as belezas, as pequenas recompensas que aparecem. Demoram, mas chegam.
Olhar é uma questão de escolha.
Em
um curso, na noite seguinte, sexta, assisto a um documentário sobre o aborto.
Uma colega faz uma referência ao médico do filme que “como sempre” comete
erros. Fico quieta. “Como sempre”, repito para mim mesma. Penso e sequer
discuto. Menina de ar moderninho, cabelos coloridos. Ela não sabia que eu era
médica. Resolvi, por preguiça, deixar que ela discursasse, que desse suas
razões e verdades para além do documentário. Mas para aquém do que eu esperaria
de alguém aparentemente sem ideias tão rígidas.
Sábado
e vou para casa da mãe, em Pelotas. Feriado na segunda. Família. Aconchego. Faz
frio e chove. Passo tempinho deitada no sofá. Durmo de sonhar e é sempre sonho
bom. Planejamos café em Porto Alegre enquanto ela faz consertos nas minhas
roupas. Televisão. Cobertor. Chocolate. Rapa de bolo no liquidificador. Meu pai
senta na calçada e sei que está fumando um cigarro. Mais do que deveria nos
seus quase 80 anos. Mas também sonha e tento pensar que é algo bom.
Programa
popular da Regina Casé que foi gravado em um hospital de câncer infantil.
Imagens bonitas. Médica humana e especial que construiu lugar humano e
especial. Crianças lindas. Notícia de um outro lugar: UTI neonatal de uma outra
cidade. Médica estudando formas de “aconchegar” os prematuros. Usando redinhas
nas encubadouras para colocar os bebês. Pesquisando de que jeito deve ser a
melhor rede para proporcionar o maior contato, a melhor posição. Quando fala
dos pequenos, a médica se emociona.
Assisto
a um documentário sobre Nise da Silveira. Médica corajosa que inovou, com arte
e até com animais de estimação, o cruel tratamento das doenças psiquiátricas do
início do século passado. Foi presa na ditadura de Getúlio junto com Graciliano
Ramos e Olga Benário Prestes. E assistindo a tantas histórias e exemplos,
lembro da menina moderninha de cabelos coloridos que repetia um “como sempre”
para falar da medicina... Sim, novamente, olhar é uma questão de escolha e é
uma pena que se escolha o pior.
Noticiário
sensacionalista sobre um homem que é flagrado furtando um celular. Pessoas
começam a bater e chutar. Um grupo de passantes faz um cordão de isolamento,
chamam a polícia e tentam controlar os outros que, enraivecidos, gritam:
“lincha!”. A televisão, em sua seleção macabra, faz questão de mostrar os rostos
alterados, os gritos de violência. Mas também, menos, mas com atenção, mostra a
luta dos que fizeram o cordão de isolamento para que o homem não fosse
machucado. Estes se expuseram, se arriscaram e até foram agredidos.
É
feira do livro na praça. Caderninhos desenhados. Doce e café quente e forte.
Neblina fria. Eu e a mãe de braços dados. Tia nos encontra na rua antiga e diz
o quanto estamos parecidas. É música no mercado. Samba de raiz. Nós nos
sacudimos e cantamos a letra simples. A mãe prefere músicas que falam de
alegria. A mãe sabe olhar e olha sempre o melhor. Estou aprendendo, subvertendo
a tudo o que me empurra a olhar para o “como sempre”, para os que gritam
“lincha!”, para o cigarro que mata aos poucos, sem negar o que há de sombrio em
tudo.
Sim,
tia, estamos ficando parecidas, eu e a mãe, e estou ficando melhor que antes. Ficando
como ela, que sempre zombamos que era a Poliana do livro. Também eu, estou
aprendendo a escolher o olhar. Olhando para as médicas que fazem um trabalho
excepcional, para as pessoas que salvaram uma vida com seus próprios corpos,
para o sonho do pai e para a festa curta do samba de letra alegre que nos faz
dançar no mercado público, juntas. Assim, me sinto mais tranquila e esperançosa
em meio a falas de catástrofes e crises.
Volto
para casa, com gostinho de carne de panela com batatinha, arroz de forno,
chocolate derretido na banana, alguns retalhos e linhas da máquina de costurar
e uma imensa admiração por quem sempre me ensina. Que elogio e que orgulho
saber que estou a cada dia mais parecida com a mãe, sempre linda. Estou
começando a ficar bonita. Demora. Mas, na alma, por dentro, é que a gente enfeita
mais com a estrada. O tempo que, dizem, nos traz rugas, dores e grisalhos, é o que
nos enfeita mais nessa vida. Jogo do Contente...
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