09 fevereiro 2016

CRIANCICES [Amélia Mano]


Maria Amélia Mano


Para Dani, Dé, Duda, Arthur, Clarinha e Tetê.


            “As coisas correm lá fora”, pensava eu, pequena, olhando pela janela do carro em movimento. A mãe explica que somos nós. Nós é que nos movimentamos. Decepcionada, observo. Noto que não há árvores e montanhas andantes. Elas estão mesmo paradas, plantadas. Aprendi.

            É férias, é família, é bingo no clube de noite. Após muitas pedras “cantadas”, meu sobrinho pequeno empata com uma senhora idosa. O organizador confere as duas cartelas. Os números anunciam dois ganhadores, mas só tem um prêmio: um ursão de pelúcia marrom.

            “As pessoas todas falam nossa língua”, pensava eu, pequena, assistindo a televisão. A mãe explica que há outras línguas. Que, nos filmes e séries, há dublagem. Me ensina o que é dublagem. Decepcionada, noto os lábios desencontrados com os sons. Aprendi.

            É tensão no salão de bingo. Com as duas cartelas preenchidas de forma correta, o organizador define que o ursão vai a sorteio. A torcida do clube inteiro vai para meu sobrinho. Urso combina mais com criança. Ainda mais quando a criança fica com um olho cor de mel, redondinho e comprido para o urso.

            Eu ainda criança, quando chovia, ficava de boca aberta querendo beber a água em pingos que caiam. Que nem passarinho. Percebi que era um jeito de brincar com a chuva, com o céu e a chuva tinha um gosto diferente. Mas não era um jeito de matar a sede. Aprendi.

            E o ursão vai para... a velhinha... A família, a torcida não disfarçou a decepção em um “aaahhhh” compriiiiido. Meu sobrinho fez um sorrisinho de quem quase teve o ursão nos braços e viu ele ir para outros braços. Ainda em expectativa, nós, família, pensamos: a velhinha vai dar o ursão pra ele...

            Eu era uma criança bobinha que demorou a crescer. Criança que inventava fadas e príncipes e não achava que eram mentirinhas engraçadas. Achava mesmo que se eu acreditasse e pedisse, as fadas apareceriam. Que poderia voar. Que havia pequenas famílias morando em buracos nas árvores. Eu acreditava nas minhas invenções.

            A velhinha não deu o urso para meu sobrinho. Disse que ia dar para o neto, distante. Achava que a velhinha podia ter aprendido sobre decepções como aprendi. Viu um menininho de olhar triste. Podia ter surpreendido. Podia abrir mão. Mas preferiu um neto que não viu e não sentiu vontade do urso.  

            Então, eu, que nem a criança que fui e ainda sou, que se decepcionava com as coisas que as crianças estavam cansadas de saber que não existiam, que se decepciona com coisas que os adultos já estão conformados. Então, eu me decepcionei com a velhinha.

            Nesse carnaval, estarei com meus pequenos sobrinhos. Uns, na verdade, não tão pequenos... Crescem rápido. Mais que eu, até. Mas olho pra eles e me vejo, um pouco, nas decepções, nas esperanças, nos sonhos, nos enganos e pequenas invenções. Criancice que insisto em viver.

            No fundo, não só queria que a velhinha desse o ursão para meu sobrinho de olhos compridos cor de mel, queria que as plantas corressem, que todas as pessoas falassem a mesma língua, que a gente matasse a sede com a boca aberta para o céu, bebendo água da chuva e que minhas invenções se tornassem reais. Talvez um dia...
             
            

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