Maria Amélia Mano
Para Dani, Dé, Duda, Arthur, Clarinha e Tetê.
“As coisas correm
lá fora”, pensava eu, pequena, olhando pela janela do carro em movimento. A mãe
explica que somos nós. Nós é que nos movimentamos. Decepcionada, observo. Noto
que não há árvores e montanhas andantes. Elas estão mesmo paradas, plantadas. Aprendi.
É férias, é
família, é bingo no clube de noite. Após muitas pedras “cantadas”, meu sobrinho
pequeno empata com uma senhora idosa. O organizador confere as duas cartelas.
Os números anunciam dois ganhadores, mas só tem um prêmio: um ursão de pelúcia
marrom.
“As pessoas todas
falam nossa língua”, pensava eu, pequena, assistindo a televisão. A mãe explica
que há outras línguas. Que, nos filmes e séries, há dublagem. Me ensina o que é
dublagem. Decepcionada, noto os lábios desencontrados com os sons. Aprendi.
É tensão no
salão de bingo. Com as duas cartelas preenchidas de forma correta, o
organizador define que o ursão vai a sorteio. A torcida do clube inteiro vai para
meu sobrinho. Urso combina mais com criança. Ainda mais quando a criança fica
com um olho cor de mel, redondinho e comprido para o urso.
Eu ainda criança,
quando chovia, ficava de boca aberta querendo beber a água em pingos que caiam.
Que nem passarinho. Percebi que era um jeito de brincar com a chuva, com o céu
e a chuva tinha um gosto diferente. Mas não era um jeito de matar a sede.
Aprendi.
E o ursão
vai para... a velhinha... A família, a torcida não disfarçou a decepção em um “aaahhhh”
compriiiiido. Meu sobrinho fez um sorrisinho de quem quase teve o ursão nos
braços e viu ele ir para outros braços. Ainda em expectativa, nós, família,
pensamos: a velhinha vai dar o ursão pra ele...
Eu era uma
criança bobinha que demorou a crescer. Criança que inventava fadas e príncipes e
não achava que eram mentirinhas engraçadas. Achava mesmo que se eu acreditasse
e pedisse, as fadas apareceriam. Que poderia voar. Que havia pequenas famílias
morando em buracos nas árvores. Eu acreditava nas minhas invenções.
A velhinha
não deu o urso para meu sobrinho. Disse que ia dar para o neto, distante. Achava
que a velhinha podia ter aprendido sobre decepções como aprendi. Viu um menininho de
olhar triste. Podia ter surpreendido. Podia abrir mão. Mas preferiu um neto que
não viu e não sentiu vontade do urso.
Então, eu, que
nem a criança que fui e ainda sou, que se decepcionava com as coisas que as
crianças estavam cansadas de saber que não existiam, que se decepciona com
coisas que os adultos já estão conformados. Então, eu me decepcionei com a
velhinha.
Nesse
carnaval, estarei com meus pequenos sobrinhos. Uns, na verdade, não tão
pequenos... Crescem rápido. Mais que eu, até. Mas olho pra eles e me vejo, um
pouco, nas decepções, nas esperanças, nos sonhos, nos enganos e pequenas
invenções. Criancice que insisto em viver.
No fundo,
não só queria que a velhinha desse o ursão para meu sobrinho de olhos compridos
cor de mel, queria que as plantas corressem, que todas as pessoas falassem a
mesma língua, que a gente matasse a sede com a boca aberta para o céu, bebendo
água da chuva e que minhas invenções se tornassem reais. Talvez um dia...
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