01 março 2016

AS PEQUENAS CAUSAS


Maria Amélia Mano

Do vento. Do vento que vinha, rodopiado, 
Redemoinho: senhor sabe – a briga de ventos. 
Quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido do espetáculo.

João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

                E sabemos, “ventaniou” muito por essas bandas faz um tempinho. Ainda não nos esquecemos dos clarões no céu pelos raios, dos estrondos dos trovões, das rajadas de chuvas chicoteadas por ventos, das árvores arrancadas pelas raízes, dos postes tombados, dos telhados voando, dos estouros dos vidros. Apavorou.

                Na esquina de uma rua do Bom Fim, bairro meu vizinho, a banquinha amarela de um casal de velhinhos foi erguida do solo e levada para metros e metros além, para o meio da rua. Banquinha humilde, de revistas antigas ou usadas. Mais era uma distração para os velhinhos aposentados. E se foi ela e todas as revistas junto.

                A prefeitura limpou os estragos e intimou os velhinhos a tirarem a banquinha do meio da rua. Tudo já era meio velho mesmo e com a queda e a chuva, ficou mais estragado. Os velhinhos não tinham dinheiro. Não é barato tirar uma coisa grande do meio da rua. Estavam tristes, sem a distração que lhes garantia alguma sensação de utilidade.

                Os vizinhos de rua se sensibilizaram. Fizeram pequena ação entre amigos. Um doa daqui, outro dali. Centralizaram as ações em lojinha transada da quadra. Pouca gente. Sem alarde. Todos gostavam dos velhinhos com cara de praça de cidade pequena. Em poucos dias, conseguiram o que eles precisavam para tirar a banquinha amarela do meio da rua. E veio o sol.

                Não só transportaram, mas arrumaram a banquinha. Assim, quando passei pela esquina da Miguel com a Osvaldo, lá estava ela reluzente, da mesma cor que o submarino dos Beatles, e com o velhinho com certo mal humor típico e conhecido. Espio as capas de revistas de bordados e receitas. Tudo com jeitinho de velho, tudo com jeitinho de cidade pequena.

                Então, desse vento que veio rodopiado, rodopiando, a briga de ventos doidos em uma cidade doida e doída que cisma em se arruinar em carros intermináveis, veio a comoção pelas árvores partidas e banquinhas de revistas de bordado, antigas, como é antigo o bordar. E a generosidade pelos velhinhos rabugentos que se distraem e pouco vendem.

                A banquinha e seu acervo, seu personagem principal, o protagonista, o velhinho, fazem parte da alma dessa cidade enrolada em ventos. Que ruim que eles, os ventos, se esbarraram, nos surpreenderam. Que ruim que eles, os ventos, derrubaram o lindo e centenário jacarandá da República, a figueira da Redenção...

                Que bom que eles, os ventos, nos alertaram sobre o quanto somos ínfimos e vulneráveis frente à natureza. Que bom que eles, os ventos, puderam nos acordar enquanto humanos e puderam acordar uma cidade que, com pequenas coisas, pequenas causas, como a da banquinha amarela, pode se tornar mais terna e mais generosa. Obrigada, Vento!            

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