05 abril 2016

NOSSO MAR


Maria Amélia Mano

Ora senhora,
chora por nós,
pescadores.

Por dores eternas
que estufam
as velhas mazelas,
e amores tão ternos
que afundam
em tolas querelas.

Ora senhora,
ora, por hora
não tenho nada pra dizer.

Ora senhora,
chora por nós,
pescadores.

Que o pranto
que agora derramo
em ondas sonoras,
transforme-se em
canto e barco
de todas as horas.

Ora senhora,
ora, por hora
não tenho nada pra dizer.

Marcelo Mello

                Isso faz tempo, muito tempo. Eu, de avental branco pra atender. Coisa rara. Mas era o exigido no dito hospital particular, onde atendia aos funcionários. Anamar de uniforme de camareira. Vestes de modelo antigo, engomado, parecendo de filme de século passado. Nós duas em tempos outros, meio fantasiadas de outras. As outras que também éramos por respeito e necessidade.

                E recordo da primeira vez que fui ao mar de Santa Catarina. Estudante, com amiga, sem dinheiro, passava a sorvete. Desde Balneário Camboriú, para cima: Barra Velha, Piçarras, Penha. Para baixo: Taquaras, Porto Belo, Bombas, Bombinhas, Tijucas. Comprei concha com muito custo em Bombinhas e me prometi voltar. Voltei para Itapema, em passeio com a avó e para a ilha, com a família, em Canasvieiras.

                  Anamar chora e me conta sua história triste. A mãe deixou do pai por um amor. Foi embora de casa deixando Anamar adolescente e os dois irmãos menores. Ela cuidou de todos. Casou, teve um filho e precisou se mudar para Porto Alegre quando o esposo, técnico de enfermagem, conseguiu trabalho no hospital. Daí, Anamar conseguiu a colocação de camareira. Mas o filho, de 5 anos, estranhou a vida e quis voltar pro antigo lar.

                Florianópolis, meu destino de fuga. Santo Antônio de Lisboa, encontro e descoberta solitária e de mãos dadas. Garopaba, minha praia escolhida, meu mar protegido pela igrejinha. Lugar onde mais ando descalça e espio as ondas do Siriú com sabor de pastel de camarão, sorvete de abacaxi e pão com manteiga na padaria da praça. Busco tesouros na areia. Sinto frio no verão que sempre chove chuva de dormir tardeinteira...

                E Anamar é de Garopaba. Filho quis ficar na praia, com os tios e o avô pescador. Anamar se viu longe do pequeno como, um dia, se viu longe da mãe. Tomou remédio para ficar feliz e nada de sorrir. Então, afastei Anamar, para que ela voltasse para o filho e para o mar, por dias. Para que descansasse da fantasia engomada, para que pensasse no que queria, para que pegasse o solzinho tímido e visse a cauda da Baleia Franca, quem sabe.

            Quando passou o tempo, ela voltou. O sorriso no moreno da pele combinava com o conhecido sotaque do litoral. Contou que passou susto grande. O pai sumiu dois dias depois de uma tempestade no mar. Bebia muito desde a saída da mãe. O medo de perder trouxe a certeza de voltar. Veio me dizer que ia pedir demissão, voltar para as gaivotas e águas vivas, para o pai e para o filho. Se o esposo pudesse e quisesse, voltava com ela.

                Olho o entardecer último de outono de Garopaba. Os barcos descansam na areia acariciada de espumas. Escuto as vozes dos pescadores que voltam do mar e penso no pai de Anamar. Devia ser um daqueles homens tostados e sofridos, banhados de redes, ondas, tempestades e mágoas. Águas dos olhos, da vida. O filho já devia ser adolescente. Não sei se continuava casada. Nunca mais soube dela. Nunca mais a vi.

             Isso faz tempo, muito tempo. Mas torcia que, assim como eu havia doado os aventais brancos, ela também nunca mais tenha precisado usar uniforme engomado. Nós, em encontro tão delicado, sendo tão outras em tempos outros. Agora, bem que poderíamos nos encontrar, em tempos nossos, sendo nós mesmas, descalças, contando das praias, dos portos, dos ventos e dos sonhos, marés e luas de clarear esse nosso mar de Garopaba.
               



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