24 maio 2016

COLO [Maria Amelia Mano]


Maria Amélia Mano


                Seu João bebia muito. Judiava da família. Teve filha deficiente e resolveu parar de beber. Daí, Dona Sueli engravidou de novo e a criança, novamente uma menina, também nasceu com a mesma doença. Ambas sem se desenvolver direito, com retardo mental, quase não se comunicavam. Teve pesquisador que quis saber de doença hereditária. Mas para eles isso não importava se nada podiam mudar nas vidas.

                Dona Sueli engordou tanto de desgosto, dizem, que mal saía de casa. Quem fazia tudo com as meninas, levava nas consultas no hospital, era Seu João. Seu João não pedia visita domiciliar e morava longe, em lugar de chão batido. Vinha com uma ou outra nas costas. Era tocante ver. Ele, homem magro, sofrido, carregando a filha doente pela estrada de chão. Todos se apressavam em atender.

                Quando cheguei na unidade, a mais velha, Diana, foi uma das primeiras pacientes que atendi. Crise de asma grave. Encaminhei para a emergência e ela não mais voltou. Isso faz uns seis anos. Ficou Dora, também asmática, mas um pouco mais forte. Soube da notícia há pouco. Dora também se foi, depois desses primeiros frios de maio. “A família descansou”, comentavam os colegas. “Dora descansou”, diziam outros.

                Então atendi o irmão mais velho das meninas. Veio trazer o filho, asmático, como quase todos da família. Atendo, oriento e pergunto pelos pais. Digo que soube de Dora. Ele diz que ela estava muito doente, mas que Seu João não se conformava. O rapaz me olha e diz: “era ele que carregava ela nas costas para todos os lugares”. Verdade. Lembro. Prescrevo a bombinha. Me despeço e mando abraço aos pais.

                Algumas pessoas falam em descanso quando cessam os cuidados exaustivos. Cuidados esses, talvez, pensam a maioria, sem chance de cura. Cuidado para amenizar sofrimento. Cuidados para ter manutenção de vida difícil. Mas quem pode julgar que quem cuida quer esse descanso? Quem disse que Seu João, que parou de beber, que usava seu próprio corpo franzino para carregar a filha, quem disse, que aquele cuidado não era seu sentido de viver...

                Das dores, das culpas, das sinas, dos pesos e dos sentidos da vida de cada um, sabemos muito pouco. Aquele homem que era pai e era mãe, viveu a metade da vida sendo colo imenso. Ele tinha orgulho terno e a maior dignidade do mundo dentro da simplicidade da fala, da humildade dos gestos. Seus passos serão mais leves, agora, mas as filhas lhe marcaram a vida e o corpo. E ele se curva. Mas, espero, erguerá os olhos em busca de novo sentido.

                Nesta noite fria, meu coração pede para o céu, sentido que seja pluma, alívio que seja presença, descanso que seja certeza de missão cumprida e colo grande, tal qual foram as costas desse pai. Um colo que também o carregue pela estrada de chão batido, testemunha de esforço e esperança. Um colo que seja do tamanho de sua generosidade e heroísmo. Um colo que seja macio e certo para a curva das costas. Um colo infinito para Seu João. Um colo.               

Ilustração: James Browne 

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