Maria Amélia Mano
Seu
João bebia muito. Judiava da família. Teve filha deficiente e resolveu parar de
beber. Daí, Dona Sueli engravidou de novo e a criança, novamente uma menina,
também nasceu com a mesma doença. Ambas sem se desenvolver direito, com retardo
mental, quase não se comunicavam. Teve pesquisador que quis saber de doença
hereditária. Mas para eles isso não importava se nada podiam mudar nas vidas.
Dona
Sueli engordou tanto de desgosto, dizem, que mal saía de casa. Quem fazia tudo
com as meninas, levava nas consultas no hospital, era Seu João. Seu João não
pedia visita domiciliar e morava longe, em lugar de chão batido. Vinha com uma
ou outra nas costas. Era tocante ver. Ele, homem magro, sofrido, carregando a
filha doente pela estrada de chão. Todos se apressavam em atender.
Quando
cheguei na unidade, a mais velha, Diana, foi uma das primeiras pacientes que
atendi. Crise de asma grave. Encaminhei para a emergência e ela não mais
voltou. Isso faz uns seis anos. Ficou Dora, também asmática, mas um pouco mais
forte. Soube da notícia há pouco. Dora também se foi, depois desses primeiros
frios de maio. “A família descansou”, comentavam os colegas. “Dora descansou”,
diziam outros.
Então
atendi o irmão mais velho das meninas. Veio trazer o filho, asmático, como
quase todos da família. Atendo, oriento e pergunto pelos pais. Digo que soube
de Dora. Ele diz que ela estava muito doente, mas que Seu João não se
conformava. O rapaz me olha e diz: “era ele que carregava ela nas costas para
todos os lugares”. Verdade. Lembro. Prescrevo a bombinha. Me despeço e mando
abraço aos pais.
Algumas
pessoas falam em descanso quando cessam os cuidados exaustivos. Cuidados esses,
talvez, pensam a maioria, sem chance de cura. Cuidado para amenizar sofrimento.
Cuidados para ter manutenção de vida difícil. Mas quem pode julgar que quem
cuida quer esse descanso? Quem disse que Seu João, que parou de beber, que
usava seu próprio corpo franzino para carregar a filha, quem disse, que aquele
cuidado não era seu sentido de viver...
Das
dores, das culpas, das sinas, dos pesos e dos sentidos da vida de cada um,
sabemos muito pouco. Aquele homem que era pai e era mãe, viveu a metade da vida
sendo colo imenso. Ele tinha orgulho terno e a maior dignidade do mundo dentro
da simplicidade da fala, da humildade dos gestos. Seus passos serão mais leves,
agora, mas as filhas lhe marcaram a vida e o corpo. E ele se curva. Mas,
espero, erguerá os olhos em busca de novo sentido.
Nesta
noite fria, meu coração pede para o céu, sentido que seja pluma, alívio que
seja presença, descanso que seja certeza de missão cumprida e colo grande, tal
qual foram as costas desse pai. Um colo que também o carregue pela estrada de
chão batido, testemunha de esforço e esperança. Um colo que seja do tamanho de
sua generosidade e heroísmo. Um colo que seja macio e certo para a curva das
costas. Um colo infinito para Seu João. Um colo.
Ilustração: James Browne
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