Maria Amélia Mano
Soube
da existência em um curso de confecção de bonecos de sucatas que acabei fazendo
e me apaixonando. Na mesma época, fazia oficinas de papier mache, antes de
fazer umas aulas teatro de sombras e curso de francês, é claro! Sim, tenho
curiosidade, tenho vontade de aprender outras artes, outras línguas e o
convívio com os novos colegas que nada tem a ver com o trabalho, me enchem de
novos ares-olhares e novos mundos. E na semana que passou, meu profe
bonequeiro, o da oficina com sucatas, me convida para uma oficina de
traquitanas. Fico orgulhosa, apesar de saber que deve convidar a todos. Mas
fiquei.
Não
vou poder. Essas pequenas travessuras deram lugar a uma grande aventura que vai
me tomar tempo, energia, criatividade e um tanto de suor e alguns quilômetros
pra rodar. Um doutorado. É. Coisa séria, de adulto. Na seleção, me perguntaram
se eu ia deixar de "me continuar" em tantos projetos. Fui sincera: disse não. O
doutorado é mais uma aventura, mais uma traquinagem, entra na lista das
oficinas de sombras e bonecos de sucata porque esses são os meus mundos e eles
devem ser misturados, ou ficarei fragmentada, em pedacinhos, e o que eu quero
da vida é inteireza, além de leveza.
Daí,
lembrei dos meus pequenos projetos dos cursos. Do papier mache, a caracol Frida
Khalo, com um monte de coisinhas penduradas na concha, andando em um skate com
hélice, com uma flor imensa entre as anteninhas e a monocelha. Do teatro de
sombras, a ideia da história da menina gordinha, mas tão gordinha que não
conseguia caminhar nas ruas pequenas do bairro. O início era um mapa com
ruazinhas bem estreitas. Daí, triste, a menina chora e suas lágrimas vão
inundando as ruazinhas e, aos poucos, vão movendo as casas e alargando as ruas
estreitas. Por fim, as ruas se tornam largas e a menina consegue sair e
caminhar feliz.
Da
confecção de bonecos de sucatas, a mulher construída de embalagem de xampu, a
cabeça de bolinha de plástico com guizos dentro. Era pra ela fazer barulho
quando pensasse: pensamento de guizos. Fiz pernas e braços articulados. Mas o
que era engraçado foi ganhando, cada vez mais, contornos femininos, seios,
nádegas, talvez inspirada nas travestis que passeavam durante a noite, na rua
do ateliê. E vieram as mãos e um jeito de fazer mãos que me apaixonei mais, com
molde de arame, com massa durepóxi, com lixa pra dar maciez, pra retirar
imperfeições, pra ser delicado...
E
criei uma história para minha mulher de cabeça de guizo e mão bonita,
apaixonada. Cabeça pequena, achei, mas talvez, pudesse lembrar as crianças com
microcefalia que nasciam na época. E quis fazer outras mãos, mãos de várias
posições, mãos que pudessem ser trocadas, portáteis, móveis, que se adaptassem
ao momento dela. Mãos até que pudessem sair do corpo, voarem, viajarem para
darem carinho, para oferecerem uma flor, tocarem um instrumento. E fiquei
envolta com o projeto das muitas mãos, da caracol Frida, da menina gordinha que
após sofrer e chorar, consegue transpor as ruas, refazer o mapa.
É,
eu sei, parece muita coisa, parece não ter conexão, mas tem. A caracol leva a
casa, o sonho, pequenas bugingangas que fazem o mundo mais feito de lar. Quero
também levar aconchego junto de mim, nas aventuras. A menininha refaz o mapa de
seu bairro, como quero repensar o mapa da comunidade que trabalho, que quero
estudar. Mapa que é cheio de lágrimas, também e que da luta, cria sorrisos e
caminhares livres. E da mulher de sucata, ah, dela quero a esperança das
crianças com microcefalia, o pensamento feliz de guizo e as muitas mãos que
voam e abraçam e acariciam e presenteiam, saindo do corpo...
Nada
disso é brincadeira. É coisa séria, como a peraltice é para a criança. Tipo
brinquedo que velhinho constrói de madeira para o neto. É preciso técnica para
a traquitana, é preciso conspiração, intuição e uma boa dose de coragem para
uma boa traquinagem. Para esse novo sonho tem também de tudo um pouco e de
muito, quase o mundo. Quero fazer muitos jeitos, muitos olhares que nem as muitas
mãos voadoras da minha boneca de sucata e pequena cabeça e que esse pensamento,
meu pensamento, seja de guizo, alegre e comovido com o mundo simples de uma
manivela, criação encantada de fazer mundo mais inteiro, mais feliz.
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