Maria Amélia Mano
O pior naufrágio é
não partir
Amyr Klink
Lembro
aqui a figura de um barquinho de papel, desses de criança, feito de dobradura
que também pode ser, em um dado momento da dobra, da obra, chapéu de soldado ou
palhaço (melhor, palhaço!). Pois esse barquinho, em uma dada composição
fotográfica artística e literária, na água, tinha a palavra escrita em sua
“borda”: “errante”. Em um outro momento, lia-se: “viaja-me” e ainda,
“navega-me” e “naufraga-me a voz”. Jeitos novos de fazer navegar em palavras,
que sempre é preciso.
O
texto inicial* do Mia Couto me fez lembrar dessa imagem poética e também da
minha trajetória, especialmente quando ele diz: “sobrevivemos porque fomos
eternos errantes, caçadores de acasos, visitantes de lugares que ainda estavam
por nascer”. O errante que o Mia se refere é o da errância nômade que, na
verdade, é sinônimo de vagamundo, sem norte, sem destino. Algo resgatado por
Nélida Piñon, quando fala de suas memórias em Coração Andarilho. Mulher que se
divide entre dois mundos, o galego e o brasileiro, tal qual eu me divido entre
ser nordestina e sulista, ela dá um outro ar ao errante, menos irresponsável e
mais romântico.
Mas
quero trazer o errante também de quem se equivoca, se atrapalha, de quem comete
erro. Porque falar de si é um pouco contar de missões, sinas, trajetórias de
conquistas. E eu quero falar de mim pelo erro. Abraço o erro com tamanha
gratidão! Foi por não ter passado em arquitetura e engenharia civil que estou
aqui. Foi por ter passado depois de uns três anos de tentativa no vestibular
pra medicina é que aprendi a estudar sozinha. Foi por ter feito uma redação
péssima que fiquei pra segunda chamada e isso me deu imensas oportunidades
depois.
Uma
delas em programa de extensão – Universidade Solidária - no sertão baiano, onde
descobri a saúde comunitária assim como descobri a educação popular, em área
indígena amazônica, depois. Ou elas me descobriram. Óbvio que tudo coroado de
alguns riscos e paixões não correspondidas, dores de cotovelo e lágrimas na
chuva. E por essas dores também corri atrás, permaneci ou fugi de experiências
que me deram, depois, imensos significados e aprendizados pessoais e
profissionais. Também pelo coração partido, estou aqui.
No
mestrado, meu sujeito de pesquisa me escolheu porque minhas escolhas eram todas
equivocadas. Assim, me envolvi, sem querer com um babalorixá e até hoje estou
envolvida com o candomblé em projeto de saúde nos terreiros. Por essa mesma
pesquisa é que comecei a estudar cultura, espiritualidade, religiosidade, magia
e a história oral. Narrativa que persiste na escrita parceira de um blog de
experiências e sentimentos cotidianos que iniciou por desabafo e refúgio, sem
pretensão. E já virou mesa redonda, palestra, oficina e vai virar livro.
E
foi porque não passei em um concurso para docente é que permaneci no lugar onde
estou o que me permitiu desenvolver, em parceria, um projeto de história oral,
memória e narrativa com a comunidade. O doutorado nasce da exaustão desse
projeto de memória e narrativa com a comunidade. Ou seja, mais do que ganhar,
aprendi a perder e a ressignificar.
Verdade
que amo e acredito em tudo que faço. Mas a saúde coletiva e tudo o que fiz e
sou são fruto de muita escolha que não fiz, mas que me fizeram e me fazem
atenta ao mundo, cada vez mais. Brinco com o Mia Couto e digo que sobrevivo
porque, além de teimosa e apaixonada, atrapalhada, sou errante, caçadora de
acasos. Errante nos dois significados estampados nesse barquinho de papel em
desconhecido mar que, agora, deixo que me leve.
*texto inspirado no texto
“O incendiador de Caminhos” do livro de Mia Couto, “Se Obama fosse Africano”. É
texto produzido em disciplina do PPG Saúde Coletiva da UFRGS, apresentado dia
30/08/2016.
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