18 outubro 2016

ESSE FEITIÇO [Maria Amélia Mano]


Maria Amélia Mano

Aos que fazem desse dia, 
o dia do médico, 
uma verdadeira missão,
um verdadeiro desafio,
uma verdadeira aventura,
a melhor aventura... 

                Joana disse: "nunca amei, tenho raiva". E eu olhava para a pequena Lia, tão linda... Ela queria uma causa, dizia que era feitiço, pedia um remédio para amar. Não era normal mãe não amar a única filha. E a pequena chegava perto nos seus seis anos de sardas e olhos pequenos, pretos. Encostava a cabeça no colo, no braço, na alma. Buscava olhar vazio de amor de mãe. Joana sentia vontade de expulsar Lia, de ver longe. Sem nenhuma paciência ou tolerância com as perguntas novas, com as travessuras velhas.

              A pequena veio após um filho querido, João, e um pouco antes da morte de uma criança, um parente do interior, tragicamente. Menininho de três anos morto pelo cachorro da casa. Caso de televisão. Família destruída. Lia tinha só quinze dias. Joana perdeu "o gosto da vida". O marido pedreiro começou a beber cada vez mais, cada vez mais. Joana engravidou, tentou “tirar”, mas veio Daniel, repleto de sorrisos. Culpa e cuidado encheram o coração de Joana que se machucava durante a gestação, coceiras sem fim.

           Quanto mais culpa, mais coceira. Quanto mais coceira, mais machucados. Tudo ainda era um grande mistério para mim. Mas, depois que Daniel nasceu, o mundo então caiu de dentro pra fora querendo se destruir, se implodir. Veio um dia e vomitou as tristezas e a pior delas, a mais cruel, a que mais doía: não conseguia amar a filha. Lia perguntava: “tu não me ama né mãe?”.  Joana negava, sofria. Entendi as feridas e as coceiras. Foi medicada em desalento, em profundo não se querer e não se amar.

               Três anos passados. O marido caiu em desgraça maior. Sem remédio para a cachaça diária. Foi trabalhar em obra longe e vem em casa uma vez ao mês. João é adolescente e continua companheiro, apesar de ser quieto. João é filho e é pai. Daniel é o que quer ser, exigente e brincalhão, alegria e limite tênue. Uma luz que não era para ter sido acesa, mas que resolveu iluminar muitos caminhos. Na ausência do marido, Joana resolveu “ficar doida de vez”. Parou com todos os remédios. Queria sentir todas as dores e raivas.

                No início, a tensão e a insônia, mais raiva, mais choro. E com o choro a calma. E com a calma a vontade de se entender, sozinha. O mundo foi fazendo voltas, cambaleio sóbrio. A solidão desejada sem cheiro de álcool foi organizando as ideias no coração. Não foi de um dia pra outro, não foi de repente, não foi. Mas percebeu que o toque de Lia era bom. Que o sorriso lhe fazia bem. Que as perguntas, as novas, e as travessuras, as velhas, eram ternas e que dar colo, fazer carinho enchia o coração de cor bonita, de cheiro de chuva com sol.

                Lia fez nove anos e, sem dinheiro muito, a família resolveu fazer festa. Festa das princesas. Joana foi no centro e bateu “foto profissional” da pequena. João pagou o bolo. Marido deu "o da semana". Decoração de princesa. Mas Joana levou foto de estúdio para o meio da decoração e colocou seta vermelha. Queria dizer que a verdadeira princesa não era a da decoração, mas a da foto. Na hora dos parabéns, Lia chorou. Chorou porque o pai estava perto, porque Joana disse que a princesa era ela, porque todos os amiguinhos vieram na festa.

                Lia chorou porque viu amor nos olhos da mãe, depois de tanto tempo. Qualquer elogio, qualquer olhar de carinho, qualquer palavra linda de Joana faz brilhar um rio imenso nos olhos da pequena. A mãe não sabe porque tanto sentimento que não teve e que tem, agora, como paixão revelada, paixão nova, amor grande de transbordar. Pensa que foi a solidão desejada. Pensa que o feitiço foi quebrado. Acha que o remédio tirava a raiva e que a raiva talvez fosse boa de viver. Pensamos juntas em tantos caminhos de amar, de entender...

                Sofremos porque amamos e desamamos. Difícil isso de amar, desamar e se reapaixonar e tentar, todos os dias, em abraços e palavras, recuperar o tempo perdido de desamor. Continuo perto na descoberta, sem dar remédio de ser feliz. Sem saber o que escrever no prontuário. Que a vida não cabe em uma consulta, em uma escrita. Que o amor, esse estranho, esse feitiço, pode chegar antes, pode chegar na hora, pode não chegar, pode sair e pode atrasar. Mas quando ele chega assim, tão esperado, tão desejado, é alento, é cura de coceira e ferida de pele. É cura de ferida de alma. É resgatar o gosto da vida.

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