Maria Amélia Mano
Dolêncio
perdeu pai e mãe cedo, ainda menino e não derramou uma lágrima sequer. Mas não
foi aí que identificaram a falta de água nos olhos e de soluços na garganta. Já
nasceu sem choro, nem grito. O mesmo quando ouviu o primeiro não, quando teve
medo do escuro, quando caiu de bicicleta, quando perdeu o primeiro amor. E
muito perdeu e muito caiu. Coração partido em muitas partes entre desamigos e desamores.
Mais de 13 ossos, dizem, quebrados em acidentes de carro. Dolêncio era caixeiro
viajante e passava na estrada.
Se
não era de tristeza e dor, tampouco era de alegria. Nasceu o filho. Nem assim.
Sem lágrimas. Olhos de estiagem. Leito da face como rio sertanejo. Árido
deserto do mirar, miragem. E havia miragem, sim, que Dolêncio era homem bom
demais. Gostava de pássaros que vinham cantar em resposta de seus assovios. Contava
segredos tristes para uma sabiá. Diziam que, nessas horas de aflição, era
possível ver brilho por dentro dos olhos de Dolêncio. Mas era a sempre
expectativa frustrada da água que nunca vinha, da lágrima ausente.
Por
esse brilho profundo, se dizia na cidade, Dolêncio chorava pra dentro.
Explicação maior para a cabeça de Dolêncio que parecia crescer e crescer.
Entupida de choro, diziam. Repleta de dor. Imensidão de água represada,
desescorrida, desencachoeirada, deseslizada, desobrigada arte de umedecer
instante da vida que volta e meia exige corredeira, correnteza, redemoinho, pra
lavagem de alma. E em cada desespero de vida que era muito naquelas viagens tão
solitárias, se dizia, a cabeça mais e mais aumentava.
Mas,
um dia, foi coisa pequena. A sabiá das confissões, a que cantava com Dolêncio
amanheceu morta com seus filhotes no portão da casa dele. Dizem que foi aí a
gota d’água ou a primeira gota d’água. Dolêncio recolheu os corpinhos, as
peninhas, as alminhas e baixou os olhos e o olhar. Fez enterro no quintal com
flor de outono e, então, chorou e chorou. Foram seis dias e seis noites de
chuva sem vento, sem raio ou trovão. Depois, calmo dia, o sol veio e inaugurou
uma manhã azul de mais profundeza de mar que altura de céu.
Cabeça
menor, diziam de Dolêncio. Chorou por fora. Mas seu olhar de comportas abertas
ainda brilhava e mais que antes! Corria o boato que, depois do quase dilúvio,
as cores do mundo para Dolêncio eram mais firmes e intensas. Havia aprendido a
enxergar sem o marejar, sem o antigo orvalho preso. Que isso é coisa de embaçar
vista e vida. Assim, Dolêncio foi visto nos campos cheios de pássaros cantando
com eles, correndo com eles, voando com eles. E o brilho no olhar, agora, era de
descoberta, após saborear o primeiro sal do rosto, liberto.
* texto para disciplina do PPG Saúde Coletiva.
* texto para disciplina do PPG Saúde Coletiva.
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