08 novembro 2016

A HISTÓRIA DE UM PRANTO


Maria Amélia Mano

                Dolêncio perdeu pai e mãe cedo, ainda menino e não derramou uma lágrima sequer. Mas não foi aí que identificaram a falta de água nos olhos e de soluços na garganta. Já nasceu sem choro, nem grito. O mesmo quando ouviu o primeiro não, quando teve medo do escuro, quando caiu de bicicleta, quando perdeu o primeiro amor. E muito perdeu e muito caiu. Coração partido em muitas partes entre desamigos e desamores. Mais de 13 ossos, dizem, quebrados em acidentes de carro. Dolêncio era caixeiro viajante e passava na estrada.

                Se não era de tristeza e dor, tampouco era de alegria. Nasceu o filho. Nem assim. Sem lágrimas. Olhos de estiagem. Leito da face como rio sertanejo. Árido deserto do mirar, miragem. E havia miragem, sim, que Dolêncio era homem bom demais. Gostava de pássaros que vinham cantar em resposta de seus assovios. Contava segredos tristes para uma sabiá. Diziam que, nessas horas de aflição, era possível ver brilho por dentro dos olhos de Dolêncio. Mas era a sempre expectativa frustrada da água que nunca vinha, da lágrima ausente.

                Por esse brilho profundo, se dizia na cidade, Dolêncio chorava pra dentro. Explicação maior para a cabeça de Dolêncio que parecia crescer e crescer. Entupida de choro, diziam. Repleta de dor. Imensidão de água represada, desescorrida, desencachoeirada, deseslizada, desobrigada arte de umedecer instante da vida que volta e meia exige corredeira, correnteza, redemoinho, pra lavagem de alma. E em cada desespero de vida que era muito naquelas viagens tão solitárias, se dizia, a cabeça mais e mais aumentava.

                Mas, um dia, foi coisa pequena. A sabiá das confissões, a que cantava com Dolêncio amanheceu morta com seus filhotes no portão da casa dele. Dizem que foi aí a gota d’água ou a primeira gota d’água. Dolêncio recolheu os corpinhos, as peninhas, as alminhas e baixou os olhos e o olhar. Fez enterro no quintal com flor de outono e, então, chorou e chorou. Foram seis dias e seis noites de chuva sem vento, sem raio ou trovão. Depois, calmo dia, o sol veio e inaugurou uma manhã azul de mais profundeza de mar que altura de céu.

                Cabeça menor, diziam de Dolêncio. Chorou por fora. Mas seu olhar de comportas abertas ainda brilhava e mais que antes! Corria o boato que, depois do quase dilúvio, as cores do mundo para Dolêncio eram mais firmes e intensas. Havia aprendido a enxergar sem o marejar, sem o antigo orvalho preso. Que isso é coisa de embaçar vista e vida. Assim, Dolêncio foi visto nos campos cheios de pássaros cantando com eles, correndo com eles, voando com eles. E o brilho no olhar, agora, era de descoberta, após saborear o primeiro sal do rosto, liberto.  

* texto para disciplina do PPG Saúde Coletiva.

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