16 dezembro 2016

SAFOS, BIZONHOS E BIZURADOS - FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS VERDE OLIVA

Amigos de farda. 1989.
Ernande Valentin do Prado

No quartel ou no 30 BIM (Trigésimo Batalhão de Infantaria Motorizada), com o tempo os soldados eram divididos virtualmente em três grupos: Safos, que sempre se viram e dão um jeito. Bizonhos, que sempre são sacaneados e os Bizurados, que se planejam e estão preparados para todas as situações. Entre esses três tipos haviam outras combinações: bizonhos adotados por Safos, Bizurados Safos, Bizurados Bizonhos, Bizonhos fortes demais para serem tratados como bizonhos. Bizurados que de tão bizurados eram considerados Safos. Nem sei onde me encaixava, mas era certo, talvez pelas lendas que se espalhavam a meu respeito, que não tinha classificação definida, nem Safo e nem Bizurado, mas certamente não era bizonho (ao menos acho). Lembro que era considerado operacional, confiável e ter certa liderança entre meus círculos, apesar de não me identificar com o exército. Ugo era o safo mor, Martins e Luciano os bizurados exemplares. Tinha os bizonhos demais, mas que se salvavam por estar no PELOPES. Alves era forte demais para ser considerado bizonho ou precisar de qualquer outra definição, forte e amigo leal como poucos. Emerson, Mersão, até para própria mãe, era o bizurado safo por excelência. Marcão, também chamado de Metelão... bem ele dava medo, mas era muito engraçado. Fiquei sabendo que morreu num caso sinistro há algum tempo.
Entre os sargentos essa classificação também funcionava, por exemplo, sargento Borba era Safo em todos os sentidos, além de líder nato e extremamente confiável. Sargento Mendonça era o bizurado, mas complicado e pouco operacional, não despertava confiança nos soldados. Sargento Dailton o bisurado safo. Cabo Hildeu, nem quero falar, mas despertava a simpatia nos safos. Cabo Medrado, sempre com cara fechada, operacional, bom coração, embora nem sempre deixasse que percebessem, certamente confiável e operacional.
Certa noite estava de Plantão na oficina (acho que foi um dos poucos plantões que fiz na vida e na oficina foi certamente a única vez). Ao lado, dobrando a esquina, ficava a posição do guarda armado. Como a porta da oficina era próxima, as vezes plantão e guarda se comunicavam, alias se comunicava o tempo todo, isso ajudava a passar o tempo. Em frente a oficina tinha a mata que cercava o batalhão e um carreador que dava no Paiol de munição, o lugar mais guardado de todo batalhão, ao redor ficava três soldados de guarda e mais dois em torno do alojamento da guarda do paiol, em frente a lagoa dos patos, onde o sargento Dailton gostava de mandar os soldados entrar como punição informal.
Ele era o rei das punições informais, gostava especialmente de mandar o soldado molhar os pés ou moia, como falava. O que era realmente horrível. O coturno dificilmente secava em um dia, ainda mais com os pés dentro dele. Para dar uma punição dentro dos trâmites burocráticos, era muito complicado, precisava participar o soldado, ou seja, relatar a ocorrência, apresentar à um superior, esperar ser publicado no diário da companhia e só aí começava a punição, que poderia ser variada: detenção no quartel, prisão, expulsão, entre outras. Fora o sargento Mendonça, quem tinha essa paciência?
Num dia chuvoso o sargento Dailton levou-nos para pista de treinando, isso não estava programado e o pelotão estava todo fardado. Em determinado momento ele mandou que tirássemos a gandola. Mersão estava sem a camiseta por baixo, que fazia parte do fardamento completo. O sargento gritou:
- O Meia Trinta e Dois,  figura, só você está certo né? Quando terminar o exercício me lembra de mandar você moia o pé.
Na hora Mersão falou para Farina, que estava ao meu lado:
- Não vou molhar o pé, não é justo, não estava programado para fazer exercícios hoje, por isso não coloquei a camiseta.
No final o sargento lembrou, ainda na pista de exercício, da promessa que fez. Abriu uma torneira e mandou Mersão molhar o pé. Ele se recusou, também como prometido. O sargento desacostumado em ter uma ordem desobedecida, apenas disse:
- Alopro, Meia Trinta e Dois?
 Diante da recusa do soldado, colocou o pelotão em forma, comandou marcha até os fundos da primeira companhia, de frente para sala de armas, embaixo das árvores onde eu mesmo já havia passado por situação semelhante com Sargento Borba.
Na sombra das arvores o Sargento Dailton comandou:
- PELOPES, sentido, exceto o Meia Trinta e Dois, fora de forma, marche.
Mersão nos contou isso muitas e muitas vezes nas semanas que se seguiram. Ficaram só os dois. Ele pensou:
- Fudeu.
O sargento lhe pediu para explicar o motivo de desobedecer a ordem. Mersão explicou. O sargento disse:
 - Admiro sua atitude, mas não posso deixar barato. Vem comigo.
Levou Mersão até o alojamento dos Sargentos, lá abriu o chuveiro e disse:
- Não quiz moia o pé, agora vai tomar um choque térmico.
Minutos depois chega Emerson molhado no alojamento, mas soldados viram que o sargento também estava molhado. Mersão, ao ser empurrado levou o sargento junto para baixo do chuveiro. 
Atitudes como essa poderia reder uma longa prisão, mas tudo ficou como estava, como se nada tivesse acontecido. Esse caso foi mais um a virar lenda no 30, mas haviam muitas outras sobre o sargento:  contava-se, nesta época, que o sargento em exercícios de campo, certa vez comandou o pelotão atravessar um rio. Todos os soldados com o fuzil acima da cabeça. Um soldado da região preveniu que o rio era fundo, mas ele disse que não e foi logo na frente. Deu um, dois três passos e afundou. Saiu gritando:
- Ultima forma soldados, o Rio é fundo.
De outra vez, insistiu em atravessar por uma mata fechada, aonde haviam prevenido que tinha um enxame de abelhas.  Santos Alves, soldado antigão, foi que contou essa história, disse que alguém preveniu:
- Sargento, aí tem abelha. Mas sargento Dailton disse, tem abelha nada, seus medrosos e se atirou na frente.
Os soldados ficaram na borda da mata, esperando. Em poucos minutos voltou correndo o sargento, se abanando, batendo as mãos pelo corpo, pela cabeça e gritando:
- Ultima forma soldados, abelha é braba.
Sempre se imaginava que se houvesse, algum dia, um ataque ao quartel, seria ao paiol. Lendas eram contadas sobre a guarda do paiol, algumas pelo sargento Borba. Uma vez, contou ele, um sargento colocou na cabeça que pegaria a guarda do paiol dormindo e, para os surpreender, desceu até o paiol pelo meio do mato e não pelo carreador, lugar onde deveria passar o sargento em ronda.
Acontece que a guarda não estava dormindo e ouviu o barulho na mata. Sabendo quem era o ronda, naquela horário (que o soldado sempre sabe) o guarda desconfiou, mas na dúvida gritou:
- Alto lá, qual a senha?
O sargento, até onde se sabe, era irreverente e valente, (ele não disse quem era, mas essa atitude era a cara do sargento Dailton), não parou e nem deu a senha, continuou em direção a borda do paiol. Então, o soldado repetiu:
- Quem vem lá, qual a senha?
O Sargento, sem se dar por vencido, respondeu:
- É o Roberto Carlos.
O soldado de guarda, que era conhecido por ser tão irreverente quanto o sargento, carregou a câmara de disparo do fuzil com o projetil 762, capaz de despedaçar um corpo inteiro àquela distância. Os sons de passos interromperam-se. O soldado, com o fuzil apontado gritou:
- Então desce cantando.
O sargento ainda tentou explicar que era o ronda, mas o soldado, sem baixar o fuzil, respondeu:
- O mato não é lugar de passar ronda, ele vem pelo carreador. E frisou: desce cantando e no rastejo, se não quiser levar chumbo.
Mas ninguém sabe dizer se essa história, como várias outras, era real. O fato é que naquela noite, vindo do paiol, ouviu-se barulhos que não eram normais. Sargento Borba, em direção ao carreador, antes de entrar na mata, conversou com o Guarda, em seguida gritou para dentro da oficina:
- Quem é o plantão que tá ai?
Já estava próximo ao portão, por conta dos barulhos que vinham do paiol, e mostrei o rosto embaixo da luz, para ser identificado pelo sargento, que era do meu Pelotão.
Então ele olhou para o soldado da guarda, que não era do PELOPES e disse:
- Passe o fuzil para o Prado.
O soldado, sem entender direito aquela situação, passou-me o fuzil. Sargento Borba disse, na margem da mata:
- Fique aqui e me cubra, vou descer até o paiol.

Mas não chegou a ir, logo avistou subindo pelo carreador o sargento do paiol. Os barulhos foram causados por um soltado da guarda que havia surtado e ameaçava explodir o paiol.
                                      [Ernande Valentin do Pradinho publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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