10 janeiro 2017

CHUVA NA GOIABEIRA


Maria Amélia Mano

 - Avô o que preciso para ser vivo?

- Necessita andar descalço na terra

- Mas eu tantas vezes ando descalço...

- Tem que andar na beira da água também, areia de praia, pedra de regato.

- Mas meus pés são finos...

- Engrossar os pés é dar sustância pra alma.

- E tem mais outro jeito de dar sustância pra alma?

- Comer fruta do pé e dormir e acordar com alguém que ama.

- Parecem duas coisas sem relação...

- Tem toda relação, é sabor e sentimento, natureza de matar fome e sede. É cuidado e calma.

- Qualquer fruta? Qualquer alguém?

- Qualquer nunca. Qualquer é nada. Qualquer coisa alimenta nada. Qualquer até mata!

- Então tem que ser alguém especial pra vida toda...

- Alguém especial naquele momento, a vida toda é muito grande, muito longa.

- E a fruta, avô?

- Ah, sabe aquela goiabeira do quintal? 

- Sei... mas é tão comum!

- A alma se alimenta de coisas simples e comuns. 

- Pensava que tinha que ser aquela fruta rara, de longe.

- Coisa rara é valiosa, sim, diferente. Mas a goiaba do quintal de infância é a mais valiosa. O sabor dela vai ser especial para sempre.

- Para sempre não é muito tempo que nem a vida toda?

- Verdade! Poucas coisas são para sempre...

- O que é para sempre, avô?

- Cada um tem seu para sempre.

- Não sei se eu tenho...

- Não tem tempo ainda. Para sempre leva tempo de ter. Depois, leva tempo de não ter mais.

- E o para sempre tem isso de ter e não ter? Perder?

- Quase tudo na vida é assim, tem tempo que sim e que não. E tudo pode se perder. Mesmo o mais certo.

- E o avô tem um para sempre, agora?

- Sim! É bom ter um ao menos na vida, por um tempo.

- Qual é o para sempre do avô?

- O meu é fácil. A goiabeira. Essa goiabeira e o sabor do doce dessas goiabas são o meu para sempre.

- E o avô já perdeu um para sempre?

- Ah, sim! Na minha idade quem ainda não ganhou e quem ainda não perdeu, não viveu.

- Deve ser ruim perder um para sempre...

- Tem para sempre que é bom que se perca. É como certeza, é como mundo. É como a gente.

- Como a gente? A gente se perde?

- Estamos sempre um pouco perdidos. Isso é estar vivo.

- Então, a minha pergunta, o que é preciso para ser vivo... É preciso se perder, um pouco?

            O avô sorri e se ergue lentamente da cadeira de balanço, pega o neto pela mão e, em silêncio, caminha até o quintal. Chega com tranquilidade até o pé de goiaba e com facilidade, ergue o braço e pega duas frutas. Oferece uma ao neto e, fechando os olhos, come a outra fruta, madura. Uma gota d’água cai na testa do neto. Começa a chover fininho, mas os dois permanecem de mãos dadas, debaixo da goiabeira. O avô começa a contar uma história das longas, das antigas, das mágicas. Os dois, perdidos na chuva, no tempo, no sabor da goiaba amarelinha, com sabor de para sempre.


Baseado no conto de Mia Couto: O Rio das Quatro Luzes – O Fio das Missangas
Texto para o PPGSCol

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