21 fevereiro 2017

TRAGO DE CABEÇA UMA CANÇÃO DO RÁDIO


Maria Amélia Mano

    Pacote padrão de papel pardo, mil selos dos locais de onde saiu e por onde passou, tipo marcas de viagem, rugas de estrada, assim era o meu embrulho do presente de Natal daquele primeiro ano longe de casa: fitas K7 e uma especial, a do Belchior. Fitinha da marca TDK que a minha mãe mandou gravar com as músicas favoritas. Servia direitinho no maior bem que um nordestino pode ter e levar pra “todo canto”: um rádio. E esse ainda tinha gravador. Os títulos das músicas da fita eram escritos a mão, letra de mãe, de longe. Saudade do tamanho da distância entre Fortaleza e Pelotas.

    Fitas K7 foram sempre minhas grandes companheiras. Na faculdade, dinheiro contadinho, comprei um rádio gravador mais moderno, com CD. Achava coisa muito chique. Pedia emprestado os CDs das amigas e passava horas gravando fitas. Gostava de gravar de rádio FM. Instinto e impulso pra saber o momento certo de ligar o play, pause e rec pra garantir a boniteza de se ouvir, sem cortar. E me aperfeiçoei nos detalhes. Nas capas, escrevia não só os títulos das músicas, colocava datas, colava uma figura, escrevia uma passagem de alguma canção ou poesia e, o melhor, dava motivos, razões para a fita existir. Explico: tinha fita de dançar, fita de namorar, fita de viajar, fita de sonhar, fita de lembrar e fita maluca em sequência absurda, tipo: Vitor Ramil, Raça Negra, Creadence e Luiz Gonzaga.

    Quase 20 verões depois daquele, estou no show do Belchior em Porto Alegre. Mal ele saúda a plateia e, na brincadeira, o povo grita: canta Raul! Não acreditei. Queria as músicas da minha fitinha de presente de mãe. Queria Medo de Avião, Como Nossos Pais, Brasileiramente Linda e Apenas Um Rapaz Latino-americano. Então, ele abriu um grande sorriso atrás daquele inconfundível bigode. Fez uma combinação com os músicos e começou a cantar: enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal. O povo delirou. Eu, ansiosa. Depois, ele vai pra “minha” última música do lado B: A Palo Seco e logo, o acorde que tanto conheço e a voz esquisita que amo: Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa...

    Fecho os olhos. Ligo o play da memória que quero gravar sem cortes para que a lembrança seja inteira, para que eu seja inteira, como as músicas tiradas da FM. Vejo uma menina esperançosa e assustada. Faz calor de sertão. A menina está rasgando um papel pardo cheio de selos. Agora, ela está com um caneta BIC “rodando” o buraco de uma fita K7 TDK, buscando essa música. Essa música. Estamos juntas agora, eu e essa menina. E cantamos de mãos dadas: E vou viver as coisas novas que também são boas. O amor, humor das praças cheias de pessoas. Agora eu quero tudo. Tudo outra vez...

* Texto para a Oficina Santa Sede

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