Maria Amélia Mano
Texto para o livro da Liga de Educação em Saúde (LES)
que sempre me instiga a ser eterna iniciante
O
que você diria para você mesmo? Não na frente do espelho, hoje. Mas, se você
pudesse, amanhã. Isso. Amanhã. Se você pudesse conversar com você mesmo em um
outro tempo: o futuro. Você de hoje conversando com o você de amanhã. Após 20
anos. O que diria? Essa foi a proposta feita no último dia de atividade da LES.
O lugar do encontro da LES era especial,
distante, longe da cidade, da universidade. Havia riachos e cachoeiras,
árvores com sombras de abraço e colo, trilhas de amoras vermelhas, casa antiga
com filtros dos sonhos voando e feixes de macela pendurados no teto.
Jovens
iniciando a faculdade, se conhecendo, conhecendo a medicina e a educação
popular, a extensão popular. Conhecendo as pessoas, as comunidades. Conhecendo
outros mundos, a possibilidade de escolher caminhos diante de tantos, diante
daquele início de trajetória que todos, um dia, tivemos. Brilho nos olhos.
Estreias cotidianas. Curiosidades. Como é bom ter muitas dúvidas! Saudades das
poucas certezas, da ingenuidade, da esperança impressa em cada primeira folha
de caderno que se inicia a escrever. Escrita caprichada do título, ainda com
jeito de colégio.
No
primeiro dia de encontro foi o desdobramento de muitas experiências e, a que eu
me propunha a facilitar, era algo simples e complicado, como os tempos de
iniciar. Era um contar de histórias onde todos eram personagens e viviam esses
personagens. E os personagens eram pássaros. Figuras pequenas cortadas em
papelão branco em forma de pássaro. Pássaros que foram enviados previamente
pelos correios, para o endereço de cada um. Carta, sim. Coisa antiga. Coisa que
não se recebe imediatamente que nem e-mail ou mensagem de celular. Desafio de
quem envia e de quem recebe. Extravios. Estragos. Surpresas e decepções, quem
sabe.
E
lá se foram os pássaros de Porto Alegre a Rio Grande, atravessando lagoa, mar,
pampa e banhado. Estradas. Ruas antigas de maresias. Os pássaros tinham
consigo, nas cartas enviadas, alguma informação sobre suas características para
que os ligantes enfeitassem cada um deles. Havia a poupa, o pato, o falcão, a
coruja, o rouxinol, o papagaio, o pavão, o pássaro obsessivo, o pássaro corado,
o passarinho, o pássaro astrólogo, o pássaro triste e ainda, os que não tinham
nenhuma referência. Criação pura. Todos são personagens da Conferência dos
Pássaros, conto Sufi que descreve a viagem de um grupo de pássaros em busca de
um grande rei - Simorgh - que deve curar todas as mazelas, as tristezas, as
violências, as injustiças. Tudo que em todos os tempos da humanidade assusta,
amedronta, diminui a leveza e a felicidade.
Peter
Sís foi a referência a partir da obra de Farid Ud-Din Attar. Farid foi um
viajante, poeta, perfumista e teólogo que viveu na Pérsia entre os séculos XII
e XIII. Na história, a poupa guia os
pássaros por sete vales perigosos. Muitos, pelas tempestades, pelas intempéries
ou por características próprias, sucumbem durante o caminho. Não seguem com o
grupo. Os que permanecem, esperançosos, buscam nas respostas de Simorgh um
consolo para o cansaço. Com os jovens estudantes de medicina da LES, os vales
foram representados por pequenos estandartes que construí e pendurei ao redor
da grande casa de fazenda que nos acolheu. Fomos caminhando e reproduzindo as
falas de cada pássaro, em cada vale, em cada encontro com seres estranhos: o
coveiro ancião, o morcego...
Cada
pássaro foi construído por cada estudante a partir do modelo e da informação
enviada por carta. Havia, então, os pássaros nas mãos dos estudantes e os sete
vales nos estandartes. Havia uma ordem nas falas inspiradas no conto e alguns
diálogos combinados. Mas havia, acima de tudo, muito improviso, muita invenção.
De alguma forma, todos os jovens da LES se identificaram com seus pássaros
distribuídos aleatoriamente. Todos inventaram coisas belas. Todos voaram pelos
vales e aguardaram o final da jornada com o encontro derradeiro por detrás da
montanha de Kaf, moradia do rei. Não sabiam como seria o final. Nunca sabemos,
de verdade.
Após
atravessarem o Vale da Procura, o Vale do Amor, o Vale da Compreensão, o Vale
do Desapego, o Vale da Unidade, o Vale do Deslumbramento e o Vale da Morte,
eles, os pássaros, os estudantes, chegaram ao rei que se escondia por detrás da
montanha de Kaf. Cada vale tinha um significado, uma lição, uma palavra. Como
respostas a todos os questionamentos, ao final, se viram diante de si mesmos em um espelho que os refletia.
Assim, não houve um ser grandioso, uma entidade máxima que respondesse a todas
as questões, mas, sim, um pequeno espelho de caixinha de maquiagem no último
estandarte representando a Montanha de Kaf. Não há respostas mágicas. Não há
fórmulas. Há nós mesmos diante de nós mesmos e essa caminhada e esse caminho. E
esses vales...
A
impressão que tive é que todos desejavam a existência de Kaf. Mas é impressão.
Também é impressão a certa decepção por algo tão simples quanto um pequeno
espelho, quanto esse ser que pensamos que conhecemos desde que nos percebemos,
desde que nos olhamos, nos sentimos, nos questionamos, nos buscamos e nos perdemos.
Nós mesmos. Não parecemos tão grandiosos. Não entendemos tudo e tampouco temos
todas as respostas. Ainda mais nos princípios de caminhos. Vamos construindo em
erros e acertos. Vamos nos construindo e
nos destruindo também. Em tristezas e alegrias, belezas e feiúras, que assim é
a vida...
Passamos,
então, esse dia de aventura, buscando o outro para
nos encontrar. Esse foi o primeiro dia. E, ao fim do segundo dia, assim,
para se despedir, esse recado para nós mesmos no futuro. Uma palavra para nós
quando "nos formarmos" médicos, cuidadores, escutadores, contadores
de histórias, semeadores de esperanças. Um conselho para nós quando tivermos
mais rugas e cabelos brancos e, talvez, menos tempo para andar descalço, rir
com os amigos, comer amoras do pé, tomar banho de cachoeira fria, dormir no
colchonete, tomar café de turma ruidosa, disputando talheres, juntos e juntos,
termos tantas curiosidades, tantas expectativas, tantos sonhos que nem sabemos
por onde começar!
Em
roda, todos mandaram recados para si mesmos quando passassem 20 anos de vida.
Desejos. Estar perto da família e ter uma família, ter filhos. Um cachorro, a
natureza, o tempo para sorrir e brincar, a leveza de dias de outono, amigos,
amigos, amigos e esses sonhos que só amigos constroem. A Liga. Sonho de amigos.
É referência, é presente e é futuro. Olho para os jovens, são meninos e
meninas, e eles me desafiam: "e você?". Eu? Talvez, naquele momento,
eu não podia ou não queria falar muito de mim daqui a
20 anos. Pais mais idosos. Estimativas de limitações físicas. Medos.
Preferi falar para a menina que fui, há
20 anos. Preferi me encontrar no espelho
com alguém muito parecido com aqueles jovens, começando.
O
que eu disse para mim mesma? Isso talvez nem
tenha tanta importância! Agora, depois de dois anos dessa experiência, esses
meninos me convidam a falar dela, daqueles dois dias lindos. Penso nos momentos
e penso neles. Que caminhos trilharam nesses dois anos? Não serão os mesmos,
mas será que não se afastaram daqueles meninos ruidosos e brincalhões?
Continuam cantando em volta da fogueira? Continuam mandando mensagens para a
amiga distante? Continuam gostando de poesia e dança? Continuam se emocionando
ao falarem de sonhos e futuro? Continuam desejando? Não são 20 anos, foram dois
anos passados. Será que algo mudou? E daqueles dois dias, o que ficou? O que
gostariam e resgatar?
Assim,
termino essa escrita agradecida e encantada, lembrando que de todas as
perguntas que me fizeram, de todas as curiosidades, uma escapou! E escapou
também a mim! É, nós não nos demos conta de que eu também, como eles, estava
junto na viagem pelos sete vales. Mas eu não era pássaro. Não construí um.
Estar facilitando uma oficina poética não quer dizer que eu não possa ser
pássaro também! Então, prometo! Fico com essa
missão entre sonhos. Dívida. Construir meu pássaro viajante. Como sempre
estamos em busca de algo nosso, de dentro de nós, que nos salve de nós e dos
caminhos. Também que nos encontre: nossas belezas e nossas fortalezas.
Talvez
eu queira ser só um pássaro menina. Talvez na criação das cores das peninhas,
eu consiga, então, falar com a senhorinha que serei daqui a 20 anos e que, há
dois anos, não consegui falar, me ver, me encontrar. Passarinho com recado para
o futuro. Revoada esperançosa. Construirei esse pássaro de futuro, de presente,
com grandes olhos negros, brilhantes e cheios de desejos. Pois o que quero
dizer a mim mesma daqui a 20 anos não deve ser tão diferente do que poderia
dizer à menina de 20 anos: há sempre sonhos para sonhar e realizar, há sempre
bons encontros e que a menina, a mulher e a senhorinha se encontrem sempre nas
buscas, em vales, em bando, na curiosidade e no espanto da vida e do caminho.
Imagem: do artista Peter Sís do livro A Conferência dos Pássaros
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