Maria Amélia Mano
Andava nos trilhos dos trens quando existiam trens de
passageiros. Parava a cada estação e conversava com os que partiam e chegavam.
Com os que esperavam. Em uma estação dizia que era militar. Em outra, era
artista de circo. Em outra, ainda, era padre. Também foi cozinheiro e
marinheiro. Sentia apreço por ruínas, qualquer uma. Tinha uma de um teatro que
foi suntuoso em tempos de glória de região esquecida. E por ter sido prédio
muito orgulhoso, a ruína também era muito orgulhosa, mas como todo orgulho, um
dia, se consumiu em solidão e esquecimento. Ruína.
Falava
sozinho e vez por outra, dava de adivinhar o tempo, caçoar dos passantes,
conversar com os passarinhos e juntar coisas achadas no chão da plataforma como
se fossem grandes tesouros. Era apaixonado pelos meninos e os meninos, por ele.
Diziam que, um dia, teve filhos e que teriam morrido em incêndio de circo, ou
em naufrágio, ou assassinados por bandidos vingativos. Histórias de cada
estação. Mas o fato é que, nas loucas frases que dizia, sempre tinha uma
verdade sem tempo. Coisa simples, colhida no vento das viagens.
Era muitos e era único em cada
estação onde, diziam, era um personagem diferente. E ele acreditava ser cada um
deles. Não era invenção. Ultrapassava a tênue fronteira entre um lugarejo e
outro, onde facilmente se atravessava com dois passos e, diziam, seu pensamento
era de outro jeito. Até sua voz mudava. Mas era sempre um personagem de bom
coração, seja da terra ou do mar, seja da arte, seja da guerra, seja dos
sabores, seja das rezas. Maquinistas e caixeiros viajantes conheciam bem esses
muitos homens de diferentes histórias.
Mas, um dia,
ele começa a ser um só. Aos poucos, vai se tornando menino e mais se junta com
os meninos. Joga bolitas, corre, corre, esconde, esconde, futebol de meia.
Quando perguntam da caserna, do convés, do picadeiro, do altar e da cozinha,
ele desconversa. Quando olham pra cima, pipas imensas nos céus dos lugarejos,
coloridos desfazendo fronteiras, unindo meninos. Trens de meninos, cruzando
mundos. Um dia, o encontrei sentado na frente da ruína e perguntei sobre esse
menino que nasceu e tomou conta dos lugares. Do sumiço dos homens muitos de
histórias muitas.
Ele sorriu
sem dentes e disse que sempre fomos e somos ou precisamos de meninos, no fundo,
na alma. Que buscava os meninos perdidos dessa vida. Os que perdeu e acha todas
as tardes, nas ruas de pedra. Que era de menino que o mundo precisava. Um dia,
todos eles voltariam, os personagens. Porque as pessoas precisam de histórias e
diferenças. Mas o menino, esse voltaria sempre, de vez em quando, quando a
fronteira entre as estações se fizesse muro, quando a loucura dos homens se
fizesse cerca e eles, os adultos, esses meninos disfarçados, precisassem se
reinventar.
* Texto para o PESC - UFRGS, com inspiração na obra de Mia Couto e nos loucos, andarilhos que conheci e ouvi contar histórias.
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