30 maio 2017

NÃO POSSO FICAR...


Maria Amélia Mano

Houve então o momento de chorar e enfrentar a casa quase vazia e dividir as coisas que ficaram. Partilha. Minha mãe, a filha mais velha, quis o antigo armário de cozinha. Aquele que guardava as taças para as visitas e os doces para os netos, os segredos temperados com canela e alecrim. O anel mais bonito já era destinado para a neta afilhada, a minha mana do meio. Era resultado de economias do meu avô, humilde. Esforço e orgulho. Enfeite para as festas.

O par de cadeiras de balanço ficaram com a neta grávida, minha irmã mais nova. Era justo que o bisneto fosse ninado na mesma cadeira que ela tirava sonecas vendo televisão, que lia Julia, Sabrina e Bianca, ou contava as mesmas piadas que por vezes, esquecia o final. Mas mesmo assim, todos ríamos.

Eu que não era a grávida ou a afilhada, não tinha uma herança certa ou justa. Acabei escolhendo o que ninguém escolheu. O anjinho de cristal que comprei pra ela em Minas. Minha intenção, na época, quando descobriu a doença, era que ela tivesse algo de proteger, de dar esperança e não deixar sentir dor. Fiquei também com a Santa Rita pequenina. Menos de 10 centímetros. Era devota. Reza para as causas impossíveis.

Mas o melhor de tudo: o CD do Noite Ilustrada, do Ataulfo Alves e dos Demônios da Garoa. Esse último, ela ouvia balançando os ombros e cantando. Esses caras são bons! Essa música é ótima! E quase dançava na cadeira de balanço. Em uma caixa de sapato, eu podia colocar o mais valioso de material que me lembrava dela como era: feliz. Mas era e é impossível um lugar para guardar o que não se pega, o que não se toca. Isso que a gente chama lembrança. Isso que a gente chama saudade.

Tempo que passa e ela que fica, sempre. Em cada vitória, prêmio, festa, nascimento, história romântica, notícia boa, quindão e chico balanceado, goiabada com leite, chocolate quente com merengue. Está ela. Sempre orgulhosa, sempre vibrando, achando que os filhos e netos são os melhores, os mais talentosos, os mais brilhantes.

Hoje, acho que o anjinho não é de cristal mas não deixa de ser uma joia rara. Uma faxineira quebrou a mãozinha da Santa Rita. Mas ela não deixa de ser simples e singela e ter o olhar que ela deve ter olhado e feito suas promessas. E os CDs, ah, pois é... Impossível ouvir e não chorar por dentro. Não sorrir. Bom pensar que ela só pegou o trem das onze, está em Jaçanã, só esperando a gente chegar pra por a mesa na cozinha de azulejo colorido. Saudades Vó.

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