Maria Amélia Mano
Houve então o
momento de chorar e enfrentar a casa quase vazia e dividir as coisas que
ficaram. Partilha. Minha mãe, a filha mais velha, quis o antigo armário de
cozinha. Aquele que guardava as taças para as visitas e os doces para os netos,
os segredos temperados com canela e alecrim. O anel mais bonito já era destinado
para a neta afilhada, a minha mana do meio. Era resultado de economias do meu
avô, humilde. Esforço e orgulho. Enfeite para as festas.
O par de
cadeiras de balanço ficaram com a neta grávida, minha irmã mais nova. Era justo
que o bisneto fosse ninado na mesma cadeira que ela tirava sonecas vendo
televisão, que lia Julia, Sabrina e Bianca, ou contava as mesmas piadas que por
vezes, esquecia o final. Mas mesmo assim, todos ríamos.
Eu que não era
a grávida ou a afilhada, não tinha uma herança certa ou justa. Acabei
escolhendo o que ninguém escolheu. O anjinho de cristal que comprei pra ela em
Minas. Minha intenção, na época, quando descobriu a doença, era que ela tivesse
algo de proteger, de dar esperança e não deixar sentir dor. Fiquei também com a
Santa Rita pequenina. Menos de 10 centímetros. Era devota. Reza para as causas
impossíveis.
Mas o melhor
de tudo: o CD do Noite Ilustrada, do Ataulfo Alves e dos Demônios da Garoa.
Esse último, ela ouvia balançando os ombros e cantando. Esses caras são bons! Essa música é ótima! E quase dançava na
cadeira de balanço. Em uma caixa de sapato, eu podia colocar o mais valioso de
material que me lembrava dela como era: feliz. Mas era e é impossível um lugar
para guardar o que não se pega, o que não se toca. Isso que a gente chama
lembrança. Isso que a gente chama saudade.
Tempo que passa
e ela que fica, sempre. Em cada vitória, prêmio, festa, nascimento, história
romântica, notícia boa, quindão e chico balanceado, goiabada com leite,
chocolate quente com merengue. Está ela. Sempre orgulhosa, sempre vibrando,
achando que os filhos e netos são os melhores, os mais talentosos, os mais
brilhantes.
Hoje, acho que
o anjinho não é de cristal mas não deixa de ser uma joia rara. Uma faxineira
quebrou a mãozinha da Santa Rita. Mas ela não deixa de ser simples e singela e
ter o olhar que ela deve ter olhado e feito suas promessas. E os CDs, ah, pois
é... Impossível ouvir e não chorar por dentro. Não sorrir. Bom pensar que ela
só pegou o trem das onze, está em Jaçanã, só esperando a gente chegar pra por a
mesa na cozinha de azulejo colorido. Saudades Vó.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?