Maria Amélia Mano
O
professor José Mauro Ceratti Lopes citava um estudo canadense que diz que um
médico interrompe um paciente em média aos 18 segundos após ele iniciar a
falar. Então, já que é para falar de resgate, de coisas que perdemos e queremos
retomar, de coisas que desvalorizamos e queremos reconquistar, o título da
palestra deveria ser o resgate do bem escutar. Porque bem cuidar é bem escutar.
E escutar é também uma revolução nesse mundo de muitas tecnologias e poucos
encontros. Muitos ruídos e pressas.
Eu sou
médica de família e comunidade há 18 anos e estar aqui é uma revolução porque o
que eu faço no cotidiano é algo que exige mais de escuta do que de fala. Uma
fala que é para poucos, mais do que para uma plateia.
E eu repito a palavra revolução pela
segunda vez de propósito, não só porque ela é forte, mas porque ela é cada vez
mais necessária. Não, ela já não se presta a bandeiras e armas. Nossas
revoluções estão nas ruas, sim, mas mais que isso, as maiores e mais profundas
revoluções estão na cozinha de casa. Quando uma menina decide sair da casa dos
pais, quando decide ter um filho aos 15 anos, quando insiste em estudar, quando
nega o assédio do padrinho e denuncia, quando quer andar de skate, quando diz
que gosta de menina. Aí temos uma revolução. E como em toda boa revolução,
temos uma heroína, ou um herói. Não, eles não usam capa, não voam, não gritam
em cima de um cavalo ou escrevem letra de hino. Essas pessoas existem e estou
aqui para falar um pouco delas.
Esse é o Aramito (foto) e ele é
agente comunitário de saúde há mais de 10 anos. Além de ser um profissional de
saúde, um elo entre a comunidade e o serviço de atenção primária à saúde, ele
constrói casinhas com material reciclável para os cachorros abandonados nas
ruas. Cuida dos animais doentes com doações de vizinhos e colegas. Essa é a
Zulmar (foto). A Zulmar “puxou carrinho”, ou seja, levava um carrinho nas
costas, buscando material reciclável nas ruas para separar e vender. Criou os
filhos. Depois, a vida melhorou e teve cavalo para ajudar no ofício. Fez cursos
profissionalizantes e virou artesã. Vocês podem encontrar ela em muitas feiras
de economia solidária. Essa é a Ângela (foto), a boleira da comunidade. Ganhou
o primeiro caderno de receitas juntando embalagens de açúcar e trocando, em uma
promoção. Também ganhou um livro de receitas que acharam em um centro de
triagem de lixo: o galpão de reciclagem da comunidade, lugar onde também vendia
seus quitutes. Ângela copia receitas em milhares de cadernos e mais que isso,
registra as impressões do dia no canto da folha. Pode ser uma palavra, pode ser
um desenho. O caderno da Ângela também é um diário (foto).
Pensando na arte das missangas da
Ângela, lembro de Mia Couto e o livro O Fio das Miçangas em que ele diz que
cada missanga é uma história e que há um fio que une todas essas histórias. O
fio que une é o fato de todas essas pessoas terem vindo da Vila Dique e terem
sido removidas para o Porto Novo. Todos viveram em um território de risco, de
alagamento, de vulnerabilidades, de estigmas e preconceitos e construíram
família, pertencimento, trabalho, histórias e dignidade. A Vila Dique está
localizada próxima ao Aeroporto Salgado Filho e sob o pretexto do progresso,
das melhores condições de moradia e muito especialmente do megaevento da Copa
do Mundo de 2014, houve a remoção que ainda não terminou. Há os que ficaram, os
que querem sair e os que querem permanecer. Profissionais de saúde da Unidade
de Saúde Santíssima Trindade que assistia àquela comunidade, inclusive eu,
conviveram diariamente com a ameaça da remoção, com a remoção e com a chegada
no novo território. Convivemos também com os que lá ficaram. Escutamos expectativa,
esperança e sofrimento.
Essa escuta veio por meio de muitos
relatos e entre eles o de uma senhora que estava prestes a ser removida. Ela me
contou que quando havia chegado na Vila Dique, ela havia plantado uma muda na
frente da sua casa. Hoje, essa muda virou árvore e muitos passarinhos cantavam
nos galhos, agradecidos a ela por ter plantado a árvore. “Os passarinhos
cantavam para mim”, dizia ela. Se escutar é revolucionário, escutar heróis
anônimos vai além. Assim, surgiu o Projeto Memórias da Vila Dique, uma parceria
do Grupo Hospitalar Conceição com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
que se prestava a ouvir. Fizemos rodas de memória com os moradores,
registramos, produzimos e fizemos um filme e um livro lançado no Salão de Atos.
Os moradores foram e autografaram.
Depois a
saudade da Vila Dique deu lugar para as lutas do presente. Era preciso lutar
por algo simples como um CEP ou o nome de uma rua. Algo óbvio para qualquer um,
mas que para aquelas pessoas, era a garantia de um endereço, uma
correspondência, uma entrega de móvel, cidadania. Depois, foi preciso
ressignificar esse novo território, dar sentido aos passos e sonhos. No antigo
território de vizinhanças e solidariedades feitas, havia espaço. Agora, são 39
metros quadrados com escada caracol. Se não é mais possível plantar no quintal,
se planta na rua. Veio a horta comunitária do Clube de Mães Margarida Alves, a
plantação de flores nos canteiros das ruas. Ainda, as vias de asfalto dão
espaço para os meninos que começam a andar de skate e que, como grupo, se
nomeiam Fênix, porque renascidos das cinzas. Tudo muda. A vida na comunidade
ganha movimento e nós, profissionais de saúde que convivemos nesse espaço, nos
movemos juntos. O Projeto Memórias da Vila Dique dá lugar ao Projeto Minha Nova
Rua que pretende incentivar e fortalecer todos esses movimentos espontâneos que
nascem da resiliência da comunidade. Pequena revolução no asfalto e na terra...
Pequenas
revoluções nossas também que aprendemos com os projetos, com as pessoas e com as
histórias que bem cuidar é bem escutar. E se é necessário resgatar algo, que
seja essa ou sejam essas revoluções cotidianas. Revoluções de cozinha e quintal,
ciclos vitais, família, as mais diversas, as mais silenciosas, as mais
delicadas, as mais complicadas, as que nos fazem perder o sono e as que nos
fazem sonhar, porque se superam, se transformam. São essas revoluções que nós,
médicos de família e comunidade, somos cúmplices. Caminhamos juntos, criamos
juntos, compartilhamos, vamos além da queixa. Somos especialista em pessoas. Uma
honra compartilhar do lugar mais sagrado que um ser humano pode estar: a
própria casa.
Temos duas mãos e o sentimento do mundo. O sentimento que nos une nesse ofício de escutar. Juntos.
Não tenho
a audácia para falar em nome de todos os meus colegas que estão nessa lida. Sei
que vivem também experiências diversas em contextos difíceis como região ribeirinha,
área indígena, favela não pacificada, área de difícil acesso, população de rua,
sertão. Cada lugar tem um desafio, uma injustiça. O resgate do bem cuidar está
na simplicidade desse ofício que é escuta mas não só. Também é preciso
problematizar e agir, criar estratégias em conjunto. Mas ainda não basta. É
preciso também contar essas histórias que ouvimos, contar juntos com as pessoas
que as fazem. Histórias reais que mais do que ajudar a entender o nosso tempo,
denunciam e revelam. Revolucionam.
E lembro
de uma poesia de colégio do Judas Isgorogota onde o filho pergunta ao pai o que
é um herói e o que pode fazer para se tornar um. Se precisa entrar em uma
guerra, se precisa odiar os homens. O pai agricultor que trabalha arduamente em
uma terra infecunda, nada responde, simplesmente pega uma peneira e sai a
semear. Assim, são os que vivem na Vila Dique e Porto Novo. Assim são as pessoas
que atendemos todos os dias. Que escutamos. Elas não sabem responder ou
explicar muito. Elas simplesmente saem a semear.
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