04 julho 2017

O RESGATE DO BEM CUIDAR - TED Unisinos [Maria Amelia Medeiros Mano]


Maria Amélia Mano

        O professor José Mauro Ceratti Lopes citava um estudo canadense que diz que um médico interrompe um paciente em média aos 18 segundos após ele iniciar a falar. Então, já que é para falar de resgate, de coisas que perdemos e queremos retomar, de coisas que desvalorizamos e queremos reconquistar, o título da palestra deveria ser o resgate do bem escutar. Porque bem cuidar é bem escutar. E escutar é também uma revolução nesse mundo de muitas tecnologias e poucos encontros. Muitos ruídos e pressas.
Eu sou médica de família e comunidade há 18 anos e estar aqui é uma revolução porque o que eu faço no cotidiano é algo que exige mais de escuta do que de fala. Uma fala que é para poucos, mais do que para uma plateia.
            E eu repito a palavra revolução pela segunda vez de propósito, não só porque ela é forte, mas porque ela é cada vez mais necessária. Não, ela já não se presta a bandeiras e armas. Nossas revoluções estão nas ruas, sim, mas mais que isso, as maiores e mais profundas revoluções estão na cozinha de casa. Quando uma menina decide sair da casa dos pais, quando decide ter um filho aos 15 anos, quando insiste em estudar, quando nega o assédio do padrinho e denuncia, quando quer andar de skate, quando diz que gosta de menina. Aí temos uma revolução. E como em toda boa revolução, temos uma heroína, ou um herói. Não, eles não usam capa, não voam, não gritam em cima de um cavalo ou escrevem letra de hino. Essas pessoas existem e estou aqui para falar um pouco delas.
            Esse é o Aramito (foto) e ele é agente comunitário de saúde há mais de 10 anos. Além de ser um profissional de saúde, um elo entre a comunidade e o serviço de atenção primária à saúde, ele constrói casinhas com material reciclável para os cachorros abandonados nas ruas. Cuida dos animais doentes com doações de vizinhos e colegas. Essa é a Zulmar (foto). A Zulmar “puxou carrinho”, ou seja, levava um carrinho nas costas, buscando material reciclável nas ruas para separar e vender. Criou os filhos. Depois, a vida melhorou e teve cavalo para ajudar no ofício. Fez cursos profissionalizantes e virou artesã. Vocês podem encontrar ela em muitas feiras de economia solidária. Essa é a Ângela (foto), a boleira da comunidade. Ganhou o primeiro caderno de receitas juntando embalagens de açúcar e trocando, em uma promoção. Também ganhou um livro de receitas que acharam em um centro de triagem de lixo: o galpão de reciclagem da comunidade, lugar onde também vendia seus quitutes. Ângela copia receitas em milhares de cadernos e mais que isso, registra as impressões do dia no canto da folha. Pode ser uma palavra, pode ser um desenho. O caderno da Ângela também é um diário (foto).
            Pensando na arte das missangas da Ângela, lembro de Mia Couto e o livro O Fio das Miçangas em que ele diz que cada missanga é uma história e que há um fio que une todas essas histórias. O fio que une é o fato de todas essas pessoas terem vindo da Vila Dique e terem sido removidas para o Porto Novo. Todos viveram em um território de risco, de alagamento, de vulnerabilidades, de estigmas e preconceitos e construíram família, pertencimento, trabalho, histórias e dignidade. A Vila Dique está localizada próxima ao Aeroporto Salgado Filho e sob o pretexto do progresso, das melhores condições de moradia e muito especialmente do megaevento da Copa do Mundo de 2014, houve a remoção que ainda não terminou. Há os que ficaram, os que querem sair e os que querem permanecer. Profissionais de saúde da Unidade de Saúde Santíssima Trindade que assistia àquela comunidade, inclusive eu, conviveram diariamente com a ameaça da remoção, com a remoção e com a chegada no novo território. Convivemos também com os que lá ficaram. Escutamos expectativa, esperança e sofrimento.
            Essa escuta veio por meio de muitos relatos e entre eles o de uma senhora que estava prestes a ser removida. Ela me contou que quando havia chegado na Vila Dique, ela havia plantado uma muda na frente da sua casa. Hoje, essa muda virou árvore e muitos passarinhos cantavam nos galhos, agradecidos a ela por ter plantado a árvore. “Os passarinhos cantavam para mim”, dizia ela. Se escutar é revolucionário, escutar heróis anônimos vai além. Assim, surgiu o Projeto Memórias da Vila Dique, uma parceria do Grupo Hospitalar Conceição com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que se prestava a ouvir. Fizemos rodas de memória com os moradores, registramos, produzimos e fizemos um filme e um livro lançado no Salão de Atos. Os moradores foram e autografaram.
Depois a saudade da Vila Dique deu lugar para as lutas do presente. Era preciso lutar por algo simples como um CEP ou o nome de uma rua. Algo óbvio para qualquer um, mas que para aquelas pessoas, era a garantia de um endereço, uma correspondência, uma entrega de móvel, cidadania. Depois, foi preciso ressignificar esse novo território, dar sentido aos passos e sonhos. No antigo território de vizinhanças e solidariedades feitas, havia espaço. Agora, são 39 metros quadrados com escada caracol. Se não é mais possível plantar no quintal, se planta na rua. Veio a horta comunitária do Clube de Mães Margarida Alves, a plantação de flores nos canteiros das ruas. Ainda, as vias de asfalto dão espaço para os meninos que começam a andar de skate e que, como grupo, se nomeiam Fênix, porque renascidos das cinzas. Tudo muda. A vida na comunidade ganha movimento e nós, profissionais de saúde que convivemos nesse espaço, nos movemos juntos. O Projeto Memórias da Vila Dique dá lugar ao Projeto Minha Nova Rua que pretende incentivar e fortalecer todos esses movimentos espontâneos que nascem da resiliência da comunidade. Pequena revolução no asfalto e na terra...
Pequenas revoluções nossas também que aprendemos com os projetos, com as pessoas e com as histórias que bem cuidar é bem escutar. E se é necessário resgatar algo, que seja essa ou sejam essas revoluções cotidianas. Revoluções de cozinha e quintal, ciclos vitais, família, as mais diversas, as mais silenciosas, as mais delicadas, as mais complicadas, as que nos fazem perder o sono e as que nos fazem sonhar, porque se superam, se transformam. São essas revoluções que nós, médicos de família e comunidade, somos cúmplices. Caminhamos juntos, criamos juntos, compartilhamos, vamos além da queixa. Somos especialista em pessoas. Uma honra compartilhar do lugar mais sagrado que um ser humano pode estar: a própria casa.
Temos duas mãos e o sentimento do mundo. O sentimento que nos une nesse ofício de escutar. Juntos.
Não tenho a audácia para falar em nome de todos os meus colegas que estão nessa lida. Sei que vivem também experiências diversas em contextos difíceis como região ribeirinha, área indígena, favela não pacificada, área de difícil acesso, população de rua, sertão. Cada lugar tem um desafio, uma injustiça. O resgate do bem cuidar está na simplicidade desse ofício que é escuta mas não só. Também é preciso problematizar e agir, criar estratégias em conjunto. Mas ainda não basta. É preciso também contar essas histórias que ouvimos, contar juntos com as pessoas que as fazem. Histórias reais que mais do que ajudar a entender o nosso tempo, denunciam e revelam. Revolucionam.
E lembro de uma poesia de colégio do Judas Isgorogota onde o filho pergunta ao pai o que é um herói e o que pode fazer para se tornar um. Se precisa entrar em uma guerra, se precisa odiar os homens. O pai agricultor que trabalha arduamente em uma terra infecunda, nada responde, simplesmente pega uma peneira e sai a semear. Assim, são os que vivem na Vila Dique e Porto Novo. Assim são as pessoas que atendemos todos os dias. Que escutamos. Elas não sabem responder ou explicar muito. Elas simplesmente saem a semear.

texto base da palestra proferida dia 01/07/2017 - TED Unisinos. Não falei tudo, mas falei a mais... E as histórias continuam a serem contadas...



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