Maria Amélia Mano
Aos poucos. Viagem de ônibus é esse sair aos
poucos e esse chegar aos poucos. De avião, em menos de um dia, atravessamos um
continente e nos vemos atrapalhados com os novos sotaques, a mágica da
distância diminuída, tecnologia em turbinas que fingimos entender. O ônibus é a
realidade, poeira e plataforma, espera e paciência, cheiros e choros de
crianças.
Aeroporto é bloco cirúrgico e shopping center. Artificial.
Não tem dia nem noite. Não tem sol nem lua. Não tem clima e toda estação do ano
é desprezada. Rodoviária é frio e calor, tempo que atravessa as esperas quase
sempre precárias nos bancos duros, nos serviços pouco delicados. Elejo uma
cafeteria pequena escondida em Porto Alegre e é o que me lembro de mais
acolhedor. Mas é só.
Aeroporto
é sempre frio: distância humana grande apesar de ser sinônimo de apressar
encontros e diminuir quilômetros. É tenso e todos parecem muito ocupados.
Rodoviária é sempre estar mais perto das pessoas apesar de ser sinônimo de
desencontros, perigos e desconfortos. Todos se preparam para um tempo parados e
valem os cobertores, os travesseiros e os lanches.
Aeroporto é de rico, rodoviária é de pobre.
Parece que essa afirmação é lugar comum, mas nem sempre. Pra mim, aeroporto
veio depois, bem depois. Então, a memória justifica minha preferência. Confesso:
amo as rodoviárias. Minha simpatia pela rodoviária é de criança. Rodoviária era
o que anunciava, sempre, o passeio, o encontro, a travessia, a aventura.
Avião era realidade distante. Aeroporto era
espera de parentes vindos quase de um outro planeta. Avião era quase nave
espacial. Sempre ônibus em vez de avião: quatro ou mais rodas e não somente
duas. Sem asas reais, mas milhões de asas em expectativas que acompanhavam os
caminhos e as paisagens em movimento. E as paradas, ah, as paradas...
Os restaurantes de beira de estrada, os lanches
ruins, as filas dos banheiros. Por que gostar desses lugares sempre tão
impregnados de poeira escura, tisna, ruído e gente com malas imensas, pacotes
disformes? Ainda recorro à expectativa da passagem quase inexistente ou
esquecida no avião. Passar duas horas é nada. Passar 12 horas é exigente. Faz
jus à pergunta: como foi a viagem?
Passar mais de 12 horas é, a cada parada,
sentir um clima diferente e tirar ou colocar uma peça de roupa. É ter muitos
companheiros de viagem que chegam e saem no trajeto. Às vezes, é ouvir
histórias. Se é viagem repetida, é colecionar rituais. Para chegar à prainha
que tanto descanso, preciso do suco de milho do primeiro parador e do biscoito
de polvilho do segundo parador. Isso me faz feliz.
Os lugares, os rituais, os sinais da estrada
fazem parte e é memória de trajetórias, tipo a vida. Essa lentidão produz
pequenas histórias e faz o afeto pelo caminho, tipo a vida, de novo, com a
paciência e o amor que precisamos ter. Sim, agradeço as horas lentas que exigem
pausa e até o frio da noite. Gosto do tempo verdadeiro. Gosto do cobertor
comprado para a noite que me envolve.
Tento registrar o momento que passa (como
todos) e o reflexo da janela me dá uma outra imagem. Gosto mesmo assim. Gosto
da solidão e do silêncio e da companhia de sono e vigília e das espreguiçadas
necessárias. Gosto ainda do encantamento dos entardeceres e amanheceres das
janelas em movimento. Ônibus é aventura antiga, terna, lenta e cheia de
lembranças. Aos poucos.
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