Maria Amélia Mano
Criança pequena, eu tinha vestidinho
predileto: poás e viés vermelhos na manga e saia. Tecido de algodão barato que
desbotou com tanta lavagem. Mãe guardou e vestiu em neta que é filha do coração e que conheci pequena
em casa de acolhida. Mandou foto dela vestida de mim e vi nossa família naquele
sorriso herdado de carinho. Aprendi que genética é a do afeto.
Criança maior, chupei bala
soft de morango até ficar do tamanho de uma pupila e coloquei nos olhos. Queria
ver tudo vermelho ou que os olhos ficassem vermelhos como os de um dragão dos
filmes do Simbad. Quase rasguei a córnea e proibiram bala soft em casa. Aprendi
que fantasia tem limite e que lágrimas são necessárias: fazem bem para olhos e alma.
Em
tempo longe de escola, as meninas desfilavam com estojos de lata. Lápis de
todos os tons de todas as cores. Eu chamava vermelho claro e vermelho escuro.
As meninas chamavam encarnado e vinho. A sobrinha (do vestidinho) chama
vermelho fraco e forte. Aprendi que cada
tempo e lugar tem jeito especial de chamar coisas simples e é esse jeito que dá
mais saudade.
Da
festa de São João, vinha o cordão encarnado da gincana, bandeirinha, fogueira,
quadrilha, pau de sebo e de fita. A fita mais bonita era a encarnada (vermelho
fraco). Cor de carne, pensava eu. Depois, aprendi que encarnado não é só cor. É
estar vivo e desencarne é morrer. Aprendi que vermelho é Ogum mas pode ser Exú
e que tudo depende da oferenda, do pedido, do desejo, da festa.
Adulta,
já trabalhando, fui ao ensaio do Boi Caprichoso, em Manaus. Fiz amigos e
prometemos nos encontrar na ilha mágica de Parintins para ver o Boi Garantido,
vermelho, um dia. Aprendi que, com frequência, adiamos sonhos e promessas e que
o vermelho briga com o azul e que nem sempre é briga bonita de Boi Bumbá.
E
foi no sul que vi briga maior de azul e vermelho. Conheci menino de cadeira de
rodas, apaixonado pelo Internacional. Sonhava jogar. Articulamos e menino foi
ao estádio e entrou no campo, com os atletas. Os pais batiam fotos da
arquibancada, orgulhosos. Internacional, vermelho, ganhou de dois a zero.
Aprendi a torcer mais pela alegria de quem acredita do que pelo time em si.
E
é com alegria que Dona Jacira que planta na horta coloca a melhor roupa para
tirar foto. Dona Jacira com brinco grande de bola de pérola e uma camisa
vermelha de festa. Pedi para ela se enfeitar para a foto e esqueci a máquina
fotográfica. Disfarcei e culpei o tempo nublado. Aprendi a ter cuidado com o
sonho que geramos e que as pessoas esperam sempre mais, muito mais.
Tem esses vermelhos de bandeiras de
lutas, ideologias e partidos. Mas sou mais a carapuça do Saci Pererê e o ruge,
o batom pra enfeitar e seduzir. Sou mais o que se faz pequeno e imenso como um
vestidinho barato, lápis de cor, bala soft, festa de santo, de boi ou de São
João, alegria do menino e vaidade da mulher que planta. Meu rubor de vergonha
pelo esquecimento da máquina fotográfica.
Aprendi
que as pequenas histórias de todos os dias são as revoluções mais verdadeiras e
são elas que tornam o mundo mais vivo, encarnado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?