Maria Amélia Mano
Ainda
há pouco, era apenas uma estrela
Zé
Ramalho
Parente distante do jacaré
do pantanal, das serpentes noturnas, dos misteriosos lagartos com terceiro
olho, dos espetaculosos camaleões com olho que gira 360 graus, dos tiranossauros
que dizem, morreram do enxofre de um meteorito (mas que prefiro acreditar que
fugiram em disco voador), aqui está ela: Mirinha. Mirinha, a pequena lagartixa
amarela, tímida e rebolativa, que passa entre fogão e pia.
Dividimos, juntas, o calor
da cozinha, em inverno que pede sopa. A que borbulha no fogo feito o caldo
quente que, há milhões de anos, gerou nossos antepassados. Aquele caldeirão de
bruxarias do universo que se fez de explosão, quando nasceu o sol e a lua. Sim,
estávamos ouvindo Zé Ramalho. Sim, bebíamos vinho e conversávamos sobre a vida.
Eu, inquieta, desejando coisas novas. Ela, frágil, com vida breve, desejando só
viver e conversar:
- Sim, sim, sou parente daquelas iguanas
da praça de Anguera. Lembra?
E a noite começou a ficar
mágica de lembranças e a angústia deu pausa. Voltei a Anguera, na Bahia. Sentada
na praça, observava as iguanas marrons passearem nos caules das grandes
árvores. Crianças, quase todas negras, me abanavam e perguntavam sobre as
próximas brincadeiras na rua. Sem televisão na maioria das casas, sem nenhum
outro lazer, a pequenina cidade do sertão se reinventava para ser mais feliz ou
menos infeliz.
Festas nas calçadas, missas
cantadas e dançadas, animadas pela Pastoral da Criança, gincanas nas ruas de
pedra. Certa noite de lua, vi uma dentadura voar de uma janela rumo ao pequeno
palco armado na esquina. A tarefa era levar uma dentadura e uma velhinha nem
duvidou: tirou sorriso branco e atirou na multidão. Nunca mais se soube daquele
sorriso voador. A rua da velhinha levou o prêmio e ela riu, feliz e banguela. Prêmio
simples, de gente simples.
Na simplicidade de tudo,
estudante sonhadora, eu só queria que aquelas terras secas e as iguanas fossem
verdes brilhantes como nos livros. Mas a buzina da Kombi do Seu Moura me
acordava do sonho cedinho da manhã. Seguíamos para as comunidades rurais onde faltava
verde e sobrava esperança. Era descoberta, desafio, medo de errar e choro de
alegria e gratidão. A lágrima sempre misturada ao pó da estrada dava pra fazer
mil potes de barro.
Os meus potes de barro e
lágrimas se equilibravam nas cabeças das mulheres. As que conversei debaixo de
uma mangueira. As que me deram duas pequenas peças de presépio, feitas por
elas, queimadas em esterco de gado. As figuras estão na minha estante, há quase
20 anos. Como a Kombi do Seu Moura, Mirinha me acorda. Mais leve e desengonçada,
pelo vinho, ela cai da parede. Me assusto. Mas quem tem vida curta pouco se
incomoda:
- Tranquilo! Se perco o rabo, ele sai a
dançar sozinho! Adoooooro "Galope Rasante"!
E cantamos juntas: a sombra que me move, também me
ilumina...
A
lembrança que me move, também me ilumina, anima, ânima, música, memória, aroma.
Sopa quase pronta. Salpico gengibre e orégano como poeira de estrelas ou de uma
Kombi na caatinga. Mais sabor nesse pequeno universo que crio, sempre em busca
de mim. Mundinho feito da estudante que fui e sou. O bicho lento e inquieto que
sempre serei. E a urgência amarela de vida de Mirinha me interrompe em etílica lígua
bífida:
- Acho melhor botar mais água na
sopa!
E Mirinha ergue a ponta do
rabo para a janela da cozinha. Um ser maravilhoso
entre a serpente e a estrela, diz o cantador. Uma linda iguana verde e brilhante nos olha e sorri com ternura. Reconheço: é sorriso que vi voar, um dia, em luar do sertão, em gincana, torcendo por uma rua distante. É tempo de voltar ao choque dos corpos celestes e ao começo dos mundos, ao essencial, à lágrima e ao barro das mulheres.
entre a serpente e a estrela, diz o cantador. Uma linda iguana verde e brilhante nos olha e sorri com ternura. Reconheço: é sorriso que vi voar, um dia, em luar do sertão, em gincana, torcendo por uma rua distante. É tempo de voltar ao choque dos corpos celestes e ao começo dos mundos, ao essencial, à lágrima e ao barro das mulheres.
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Um brinde aos recomeços!
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