19 setembro 2017

FORÇA VERDE


Maria Amélia Mano

Ainda há pouco, era apenas uma estrela
Zé Ramalho

Parente distante do jacaré do pantanal, das serpentes noturnas, dos misteriosos lagartos com terceiro olho, dos espetaculosos camaleões com olho que gira 360 graus, dos tiranossauros que dizem, morreram do enxofre de um meteorito (mas que prefiro acreditar que fugiram em disco voador), aqui está ela: Mirinha. Mirinha, a pequena lagartixa amarela, tímida e rebolativa, que passa entre fogão e pia. 

Dividimos, juntas, o calor da cozinha, em inverno que pede sopa. A que borbulha no fogo feito o caldo quente que, há milhões de anos, gerou nossos antepassados. Aquele caldeirão de bruxarias do universo que se fez de explosão, quando nasceu o sol e a lua. Sim, estávamos ouvindo Zé Ramalho. Sim, bebíamos vinho e conversávamos sobre a vida. Eu, inquieta, desejando coisas novas. Ela, frágil, com vida breve, desejando só viver e conversar:

- Sim, sim, sou parente daquelas iguanas da praça de Anguera. Lembra?

E a noite começou a ficar mágica de lembranças e a angústia deu pausa. Voltei a Anguera, na Bahia. Sentada na praça, observava as iguanas marrons passearem nos caules das grandes árvores. Crianças, quase todas negras, me abanavam e perguntavam sobre as próximas brincadeiras na rua. Sem televisão na maioria das casas, sem nenhum outro lazer, a pequenina cidade do sertão se reinventava para ser mais feliz ou menos infeliz.

Festas nas calçadas, missas cantadas e dançadas, animadas pela Pastoral da Criança, gincanas nas ruas de pedra. Certa noite de lua, vi uma dentadura voar de uma janela rumo ao pequeno palco armado na esquina. A tarefa era levar uma dentadura e uma velhinha nem duvidou: tirou sorriso branco e atirou na multidão. Nunca mais se soube daquele sorriso voador. A rua da velhinha levou o prêmio e ela riu, feliz e banguela. Prêmio simples, de gente simples.

Na simplicidade de tudo, estudante sonhadora, eu só queria que aquelas terras secas e as iguanas fossem verdes brilhantes como nos livros. Mas a buzina da Kombi do Seu Moura me acordava do sonho cedinho da manhã. Seguíamos para as comunidades rurais onde faltava verde e sobrava esperança. Era descoberta, desafio, medo de errar e choro de alegria e gratidão. A lágrima sempre misturada ao pó da estrada dava pra fazer mil potes de barro.

Os meus potes de barro e lágrimas se equilibravam nas cabeças das mulheres. As que conversei debaixo de uma mangueira. As que me deram duas pequenas peças de presépio, feitas por elas, queimadas em esterco de gado. As figuras estão na minha estante, há quase 20 anos. Como a Kombi do Seu Moura, Mirinha me acorda. Mais leve e desengonçada, pelo vinho, ela cai da parede. Me assusto. Mas quem tem vida curta pouco se incomoda:

- Tranquilo! Se perco o rabo, ele sai a dançar sozinho! Adoooooro "Galope Rasante"!

E cantamos juntas: a sombra que me move, também me ilumina... 

            A lembrança que me move, também me ilumina, anima, ânima, música, memória, aroma. Sopa quase pronta. Salpico gengibre e orégano como poeira de estrelas ou de uma Kombi na caatinga. Mais sabor nesse pequeno universo que crio, sempre em busca de mim. Mundinho feito da estudante que fui e sou. O bicho lento e inquieto que sempre serei. E a urgência amarela de vida de Mirinha me interrompe em etílica lígua bífida:

- Acho melhor botar mais água na sopa! 

E Mirinha ergue a ponta do rabo para a janela da cozinha. Um ser maravilhoso
entre a serpente e a estrela, diz o cantador. Uma linda iguana verde e brilhante nos olha e sorri com ternura. Reconheço: é sorriso que vi voar, um dia, em luar do sertão, em gincana, torcendo por uma rua distante. É tempo de voltar ao choque dos corpos celestes e ao começo dos mundos, ao essencial, à lágrima e ao barro das mulheres.

- Um brinde aos recomeços! 

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