05 setembro 2017

JOSÉ E O SABIÁ


Maria Amélia Mano

Nietzsche
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É José o nome do meu santo. Santo do dia em que nasci. Padroeiro dos carpinteiros e artesãos. Santo das esperanças nordestinas de chuvas em equinócio de março. Inverno lá. Outono aqui. Estações que se sucedem, rios que secam, transbordam, irrigam.

Véspera de primavera. O dia chega com calor, cansaço e canto de sabiá. Canta e cantará assim até novembro, perto do verão, dizem. Seduzindo parceira, desejando ninho. O canto da manhã do amor desejado me diz: hoje será dia especial.

Rodoviária de tarde. Interurbano na BR 386.  Tudo acontece no caminho. Tudo acontece a caminho. Tudo é caminho. Lembro o sabiá e as estações. A manhã e o tempo ido e indo. Alguém que mora no coração está se despedindo. Chama-se José.

Eu, quieta no assento azul onde sonho e a estrada se move, rápida.  As placas voam. Não ultrapasse, 80 km por hora, retorno a 500 metros, pista dupla, travessia de pedestres. Porque tudo é travessia. E porque a travessia é tudo. Travessia.

Dois meninos morenos e pequenos brincam na beira da pista. Perigo e liberdade. Porque liberdade é sempre perigosa. Sempre foi e sempre será. Mas correr perigo é libertador. Necessário como voar. Então, alguém que mora no coração e que lutou pela liberdade, se foi em voo.

Voa o carpinteiro, o artesão negro, o que anunciava chuva branca, o que esculpia canto de todas as cores. Ouço notícia em voz trêmula. Lágrima primeira percorre caminho no rosto. Como caatinga a espera. Ainda ser-tão em mim. Aridez de viagem, sem conseguir chorar.

Segue a estrada seca. Caminhão de melancia. Recomendam diferentes velocidades para diferentes pesos de veículos. Propaganda de 450 canais de tevê: pra quê? A vida que importa depende de menos peso e velocidade, de menos canais e mais quintais.


Placa escrita a mão: ervas medicinais aqui. Cura hemorróidas, problema no fígado, no coração. Ervas de casa. Curas de casa. Deuses de casa. Batuques e refúgios. Ultrapassagens e passagens. Ponte sobre Arroio Eufrázia. Quem teria sido Eufrázia?

Uma lavadeira que morreu no arroio? Uma negra alforriada conhecida pelas curas e magias? Não, seria provavelmente a dona de todas aquelas terras. Dona branca. Segunda lágrima. Mais muitas. Não conto mais. Agora, sim, chove em mim. É São José dos invernos.

Mas inverno no nordeste é lindeza, verde verdejando e flor floreando. É alegria. E eu só acredito em um José que chove, verdeja, floresce, dança e canta. Canta como o sabiá. Só que esse pássaro da manhã, Ogan José Marmo, cantará para além de novembro. Cantará e cantará. Onde estiver, cantará.


fotos tiradas na manhã do dia primeiro de setembro de 2017

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