Maria Amélia Mano
Nietzsche

É José o nome do meu santo. Santo do dia em que nasci. Padroeiro dos
carpinteiros e artesãos. Santo das esperanças nordestinas de chuvas em
equinócio de março. Inverno lá. Outono aqui. Estações que se sucedem, rios que
secam, transbordam, irrigam.
Véspera de primavera. O dia chega com calor, cansaço e canto de
sabiá. Canta e cantará assim até novembro, perto do verão, dizem. Seduzindo
parceira, desejando ninho. O canto da manhã do amor desejado me diz: hoje será
dia especial.
Rodoviária de tarde. Interurbano na BR 386. Tudo acontece no caminho. Tudo acontece a
caminho. Tudo é caminho. Lembro o sabiá e as estações. A manhã e o tempo ido e indo.
Alguém
que mora no coração está se despedindo. Chama-se José.
Eu, quieta no assento azul onde sonho e a estrada se move,
rápida. As placas voam. Não ultrapasse, 80 km por hora, retorno a 500 metros, pista dupla,
travessia de pedestres. Porque tudo é travessia. E porque a travessia é tudo.
Travessia.
Dois meninos morenos e pequenos brincam na
beira da pista. Perigo e liberdade. Porque liberdade é sempre perigosa. Sempre
foi e sempre será. Mas correr perigo é libertador. Necessário como voar. Então,
alguém que mora no coração e que lutou pela liberdade, se foi em
voo.
Voa o carpinteiro, o artesão negro, o que
anunciava chuva branca, o que esculpia canto de todas as cores. Ouço notícia em
voz trêmula. Lágrima primeira percorre caminho no rosto. Como caatinga a
espera. Ainda ser-tão em mim. Aridez de viagem, sem conseguir chorar.
Segue a estrada
seca. Caminhão de melancia. Recomendam diferentes velocidades para diferentes
pesos de veículos. Propaganda de 450 canais de tevê: pra quê? A vida
que importa depende de menos peso e velocidade, de menos canais e mais quintais.
Placa escrita a
mão: ervas medicinais aqui. Cura hemorróidas, problema no fígado, no coração. Ervas
de casa. Curas de casa. Deuses de casa. Batuques e refúgios. Ultrapassagens e
passagens. Ponte sobre Arroio Eufrázia. Quem teria sido Eufrázia?
Uma lavadeira
que morreu no arroio? Uma negra alforriada conhecida pelas curas e magias? Não,
seria provavelmente a dona de todas aquelas terras. Dona branca. Segunda
lágrima. Mais muitas. Não conto mais. Agora, sim, chove em mim. É São José dos
invernos.
Mas inverno no nordeste é
lindeza, verde verdejando e flor floreando. É alegria. E eu só acredito em um
José que chove, verdeja, floresce, dança e canta. Canta como o sabiá. Só que
esse pássaro da manhã, Ogan José Marmo, cantará para além de novembro. Cantará
e cantará. Onde estiver, cantará.
fotos tiradas na manhã do dia primeiro de setembro de 2017
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