Maria Amélia Mano
Porto Alegre, 22 de outubro de 2017
Meu
amigo, escrevo para pedir ajuda. Explico a partir de uma história que vem me
causando certa inquietação e alguma alegria escondida. Sim, parece que estou
prestes a encontrar um tesouro valioso que talvez tenha perdido em alguma
estrada distante, antiga, talvez mais empoeirada do que algumas crenças que
ainda tenho. Acredite, eu tenho momentos de pouca fé ou muita realidade. Talvez
pelas histórias que escuto. Mas vamos ao causo.
Você
me diz sempre que nada é por acaso e que tudo tem uma razão e uma energia. Uma
energia que atrai e causa repulsa, que pode adoecer ou curar, inspirar. Você acredita
que algumas situações são sinais e que o universo conspira. Confesso que essas
ideias não fazem parte do meu cotidiano e encaro os fatos como coincidências e
acasos. Preciso de muitas provas ou de um sentimento maior para achar que é uma
conspiração do universo. Isso não quer dizer que não veja brilho e magia em
alguns movimentos. Você sabe.
Lembra,
há um mês, um ninho, aos poucos, se formou na minha área de serviço.
Estatística ruim, investimento imenso de um bichinho frágil com poucas chances
em apenas dois ovinhos. Me senti comprometida com a proteção da pequena família
e você me disse que nenhuma escolha era à toa, tampouco a da rolinha. Minha
casa tinha energia boa, energia de ninho. Que aquilo era vida e fertilidade.
Como ter filhos era algo improvável, eu poderia ter inspirações, resolver
dilemas, abrir caminhos. Gostei!
Evitava
invadir a área para causar o mínimo transtorno. Olhava o ninho pelo vidro do
banheiro ou da cozinha. Tivemos, eu e a rolinha, um momento tenso de tempestade
de setembro em que resolvi proteger o ninho causando visível angústia para ela.
Também, ajeitei os dois ovinhos no centro do ninho quando vi que estavam na
beira. Por vezes, cruzamos olhares e o que eu tentava dizer era: fique tranquila, não vou te fazer mal, quero
te ajudar, estou torcendo por vocês.
Certa
manhã, espiei o ninho e lá estava ele: só um filhote, ínfimo, penugem cinza,
respiração débil, frágil, frágil. Novamente me retirei e na manhã do dia 21 de
outubro, descobri o corpinho sem vida. Decepção, injustiça da natureza. Gestação
que começou com juntar galhos, vigilância e repouso constantes, horas sem voos
e passeios. Fui testemunha. Não vi mais a rolinha que, quando não estava no
ninho, ficava no telhado, próximo, cuidando tudo de um longe-perto-seguro. O
céu ficou mais vazio naquela manhã do mesmo dia em que minha avó, já em mundo
de saudades, fazia aniversário.
Decidi
enterrar o bichinho no dia seguinte, no domingo, embaixo de alguma árvore que
convidasse ao descanso. A manhã de sol me acompanhava em caminhada ao parque
com um pacotinho valioso. Sem nome, enrolado em papel pardo, o corpinho cinza
saía em cortejo onde só eu sabia do
velório. Minha mão esquentava. Achei que, de tão pequena e breve, aquela
vidinha que se foi combinava mais com canteiro do que com parque. Coisa miúda.
Exigiu cova rasa feita discretamente entre raízes-braços de uma árvore antiga e
amiga. Tudo na frente da guardadora de carros que ria sozinha, olhando o
celular.
Sem
cúmplices, em solitude, missão cumprida. Segui na feira ao lado do parque, lembrando
do último verso da música “canteiros” que diz para cuidar da vida. Na casa em
frente à árvore amiga, um grafite: uma menina lê. Caminhadas, degustações,
pequenas compras, sol e frio, ainda frio para um outubro. Lembro apelidos
engraçados da avó e penso em escrever sobre ela a partir dos apelidos. A avó
que tinha os cabelos cinza-prata como a penugem do filhote. A avó que pouco viu
dos meus escritos. Que lia romances e escrevia cartas.
Café,
casa e a notícia da morte de uma escritora que não conhecia. Olho a figura de
cabelos também prata e as palavras, os desenhos. Uma imagem da página dela:
raízes de árvores, como uma imensidão de árvores, árvores amigas. Tudo de uma
beleza e significado necessário ao meu dia. Ela lia Campbell: “tudo é ilusão,
deixe passar” e “tudo está em ordem: deixe acontecer”.
Se,
como você diz, realmente nada é por acaso e há inspirações, conspirações e
verdades nascidas de algo que não vemos, tudo isso não terminou e esses cinzas
devem me dizer algum segredo que ainda não descobri. Desde as tempestades de
setembro, a fragilidade da vida, a caminhada, a menina que lê, a saudade da
avó, a canção antiga, a árvore amiga, o sorriso alheio ao mundo, a roupa limpa
secando na corda, a área vazia, o mito, a poesia que descubro pela partida e
essa carta em pleno domingo. Qual é a resposta? Me ajuda a unir esses fios cor
de prata. Agora, sinceramente, eu quero acreditar.
Aguardo!
Com carinho
Amélia
Figura da ilustradora, poeta e autora de histórias infantis, a mineira Ângela Lago, que faleceu dia 22 de outubro em Belo Horizonte.
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