Maria Amélia Mano
Livro Artes e Ofícios. Poesia para criança. Roseana
Murray faz versos de algumas profissões: a professora, o carteiro, a arquiteta, o
catador de papel, o lambe-lambe, o guarda-noturno, o médico, a rendeira, a florista.
Diz para os pequenos leitores que todo ofício é arte e que o poeta é um pouco
de tudo e de todos. Uma poesia, em especial, fala do dia que mal nasce e ele, o
artesão das horas matutinas se debruça sobre o coração dos relógios. Cedinho,
mede as pulsações do tempo, os batimentos dos dias.
Saudade boa de um personagem em extinção em tempos
de pressa e impaciência, pouco conserto e muito descarte: os relojoeiros. Não
esses de relógio moderno. Mas esses especialistas em engrenagens antigas. Esses
velhinhos de pelos nas orelhas e óculos na ponta do nariz. Sobrancelhas grossas
como duas taturanas que se movem em separado. Independentes. Eles vivem em
mágicas portinhas, oficinas nos centros das cidades: consultórios de memórias
de pulso. Explicam procedimentos, fazem diagnósticos complicados e quase sempre
dão esperanças: tem cura. Tem tempo. São cuidadosos pra falar do sem jeito, sem
modos e sem conserto da vida: as falências de múltiplas horas.
Feito médico antigo de interior, o relojoeiro fiel
ausculta os ruídos dos velhos aros e rodas. Com mãos delicadas, lupa e pinças
finas, ajusta as pequenas peças: microcirurgias. Há caixinhas misteriosas
repletas de tesouros em miniatura como molas, pinos e parafusos: pequenos
órgãos a serem transplantados. Faz sutura delicada de curar minutos e segundos.
Consola ponteiros com microgotas: homeopatia de instantes. Ressuscita a medida
do tempo, mas não cura teimosias de cordas. Os preguiçosos atrasam; os tiranos adiantam;
os temperamentais param, vez ou outra. E os suicidas escolhem o para sempre. Nunca
vai entender o desamparo de alguns desperta-dores.
Relógio. Segundo a poesia, quando parado, é pássaro
adormecido em sono encantado de tempo. Quando acordado, saído de um coma, faz
suspiro de alegria do velhinho. Relojoeiro. Ouve histórias de chaves. Segredos
de pêndulos. Atribui toda fraqueza à umidade, como médicos atribuem aos vírus.
Dá alta para os sãos e salvos e aconselha. Assim, a alma acarinhada dos velhos relógios
se despede da oficina. O adeus é feito de ternura quase imperceptível. É
arritmia emocionada: tic-tac engasgado, tac-tic desordenado. É leve embaçamento
no vidro antigo. Isso não é febre de recaída. É sentimento. São pequenas
lágrimas que viraram vapor. Lágrimas da mais pura gratidão. Só o velhinho, os poetas,
os loucos e as crianças sabem.
Ilustração: Shannon Stamey
* Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de
Botequim - safra 2017
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