21 novembro 2017

O RELOJOEIRO


Maria Amélia Mano

      Livro Artes e Ofícios. Poesia para criança. Roseana Murray faz versos de algumas profissões: a professora, o carteiro, a arquiteta, o catador de papel, o lambe-lambe, o guarda-noturno, o médico, a rendeira, a florista. Diz para os pequenos leitores que todo ofício é arte e que o poeta é um pouco de tudo e de todos. Uma poesia, em especial, fala do dia que mal nasce e ele, o artesão das horas matutinas se debruça sobre o coração dos relógios. Cedinho, mede as pulsações do tempo, os batimentos dos dias.

Saudade boa de um personagem em extinção em tempos de pressa e impaciência, pouco conserto e muito descarte: os relojoeiros. Não esses de relógio moderno. Mas esses especialistas em engrenagens antigas. Esses velhinhos de pelos nas orelhas e óculos na ponta do nariz. Sobrancelhas grossas como duas taturanas que se movem em separado. Independentes. Eles vivem em mágicas portinhas, oficinas nos centros das cidades: consultórios de memórias de pulso. Explicam procedimentos, fazem diagnósticos complicados e quase sempre dão esperanças: tem cura. Tem tempo. São cuidadosos pra falar do sem jeito, sem modos e sem conserto da vida: as falências de múltiplas horas.

Feito médico antigo de interior, o relojoeiro fiel ausculta os ruídos dos velhos aros e rodas. Com mãos delicadas, lupa e pinças finas, ajusta as pequenas peças: microcirurgias. Há caixinhas misteriosas repletas de tesouros em miniatura como molas, pinos e parafusos: pequenos órgãos a serem transplantados. Faz sutura delicada de curar minutos e segundos. Consola ponteiros com microgotas: homeopatia de instantes. Ressuscita a medida do tempo, mas não cura teimosias de cordas. Os preguiçosos atrasam; os tiranos adiantam; os temperamentais param, vez ou outra. E os suicidas escolhem o para sempre. Nunca vai entender o desamparo de alguns desperta-dores.

Relógio. Segundo a poesia, quando parado, é pássaro adormecido em sono encantado de tempo. Quando acordado, saído de um coma, faz suspiro de alegria do velhinho. Relojoeiro. Ouve histórias de chaves. Segredos de pêndulos. Atribui toda fraqueza à umidade, como médicos atribuem aos vírus. Dá alta para os sãos e salvos e aconselha. Assim, a alma acarinhada dos velhos relógios se despede da oficina. O adeus é feito de ternura quase imperceptível. É arritmia emocionada: tic-tac engasgado, tac-tic desordenado. É leve embaçamento no vidro antigo. Isso não é febre de recaída. É sentimento. São pequenas lágrimas que viraram vapor. Lágrimas da mais pura gratidão. Só o velhinho, os poetas, os loucos e as crianças sabem.

Ilustração: Shannon Stamey
Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017

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