14 novembro 2017

TODAS AS CANÇÕES DE NINAR


Maria Amélia Mano

Vive dentro de mim 
a mulher roceira. 
– Enxerto da terra, 
meio casmurra. 
Trabalhadeira. 
Madrugadeira. 
Analfabeta. 
De pé no chão. 
Bem parideira. 
Bem criadeira. 
Seus doze filhos. 
Seus vinte netos.

Cora Coralina

Julie é a melhor enfermeira do setor de neonatologia. Cuida dos pequenos, dos bem, bem pequenos. Tão pequenos que, nem sempre, abrem os olhos ou têm sobrancelhas ou pestanas. Tão pequenos que bebem o leite das mães em conta-gotas. E é neste mundo pequeno de luta pela vida que é grande, que Julie trabalha.

Julie prefere os plantões noturnos. Não gosta do dia e de suas badalações, visitas, ansiedades e choros. Na noite, todas as vidas pequeninas são suas e Julie conta histórias ou canta canções de ninar. Quando pode, inventa mais histórias e canções.

Também inventa nomes. Sim, se o bebê não tem nome, é sempre Julie que escolhe o nome e é sempre o nome perfeito, sempre cabe na vida que começa e, às vezes, na vida que brevemente termina.

Uma noite, Julie estava cantando baixinho e sentiu que várias vozes a acompanhavam como um coro. Coro de crianças. Sentiu canto forte, mas leve. Belo, mas triste e, ao fim de mais uma canção inventada, tantas vezes, tantas noites cantadas, sentia e sentia mais.

Não identificou de onde vinham as vozes. Buscou em todos os frios recantos brancos da UTI neonatal e nada! Foi somente quando fechou os olhos é que Julie viu o coro. Todas as crianças, os pequenos, muito pequenos que, um dia, por ela passaram e se foram, em vida breve, em morte sem sentido.

Eram elas, Julie reconheceu: Paula, Luíza, Francisco e o pequeno Gustavo. Estavam lá, todas as noites, com Julie, inspirando histórias e canções de ninar.



Exercício de escrita em 15 minutos da oficina "Vai ter escrita de mulher, sim!" 

Ilustração: Akiko Hoshino


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