26 dezembro 2017

PARA VER AS MENINAS


Maria Amélia Mano

Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito
Paulinho da Viola

Tempo é mais medida de sentimento que de hora. Tem tão tempo distante, tão imenso que só vemos com telescópio, em noite clara. Tem tempo tão perto, tão pequeno, que dá pra abraçar. Como se pegasse o infinito com as mãos.

Após 30 anos, se reencontraram na mesma pracinha de interior. Distantes, quase desconhecidas. Lembraram quem foram: um ponto de partida. Vera, sempre cheia de certezas e verdades: era a revolucionária. Carolina, a Carola, vivia apaixonada e era a que mais rezava na igreja, a queridinha das freiras do colégio.  Isabela, a Bela, linda e namoradeira. Cheia de conquistas. Engravidou jovem que não viveu o que todas viveram. Luzia recitava poesias nas datas festivas. Eram poesias imensas, cheias de termos difíceis. E Luzia encantava não só pela dicção e memória, mas porque encenava. Cada verso era um gesto, uma expressão, um olhar. Luzia iluminava.

Veio a primeira cerveja. A segunda. Outras mais. Aos poucos elas foram se revelando. Só este amor assim descontraído. Vieram saudades e medos. Depois, confissões, mistérios, surpresas. Vera das verdades teve câncer, mudou de profissão. Perdeu certezas. Carola foi apaixonada pela professora de matemática. Hoje vive feliz com uma dentista que diz: é ruiva e linda. Bela teve um amante durante o casamento. E recomenda. Quando se divorciou, viveu tudo que não viveu na adolescência. E também recomenda. Luzia recorda pouco de muita coisa - eu não me lembro mais quem me deixou assim. Trabalho duro, filhos adolescentes, prestação da casa. E o tempo de tão distante se fez imensidão. Sem fim. Sem noite clara. Sem telescópio de ver menina que brilha.

Luzia, enquanto esquece um pouco a dor no peito, pede: meninas, digam como eu era. Silêncio, por favor. Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos. E cada uma, do seu jeito, contou da beleza de Luzia ao recitar. Luzia poesia. Das palavras que faziam chorar. Luzia luzia. E ali, Luzia luziu. Sorriu e do sorriso renasceu o verso. Falado. Sentido. De novo. Você ainda é a mesma, disse Vera e se for preciso eu repito. Aquela memória de iluminar rosto, riso, resgatou não só a menina das palavras mágicas. Todas as meninas, assim, mais leves, mais sábias, com 14 anos, se abraçaram na praça. E o tempo de tão perto, se fez pequeno, e se fez ontem. Pegaram o infinito com as mãos.

Ilustração: Rie Nakajima
Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017

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