Maria Amélia Mano
Porque
hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito
Paulinho
da Viola
Tempo é mais medida de sentimento
que de hora. Tem tão tempo distante, tão imenso que só vemos com telescópio, em
noite clara. Tem tempo tão perto, tão pequeno, que dá pra abraçar. Como se
pegasse o infinito com as mãos.
Após 30 anos, se
reencontraram na mesma pracinha de interior. Distantes, quase desconhecidas. Lembraram
quem foram: um ponto de partida. Vera, sempre cheia de certezas e verdades: era
a revolucionária. Carolina, a Carola, vivia apaixonada e era a que mais rezava
na igreja, a queridinha das freiras do colégio. Isabela, a Bela, linda e namoradeira. Cheia de
conquistas. Engravidou jovem que não viveu o que todas viveram. Luzia recitava
poesias nas datas festivas. Eram poesias imensas, cheias de termos difíceis. E Luzia
encantava não só pela dicção e memória, mas porque encenava. Cada verso era um
gesto, uma expressão, um olhar. Luzia iluminava.
Veio a primeira cerveja. A
segunda. Outras mais. Aos poucos elas foram se revelando. Só este amor assim descontraído. Vieram saudades e medos. Depois, confissões,
mistérios, surpresas. Vera das verdades teve câncer, mudou de profissão. Perdeu
certezas. Carola foi apaixonada pela professora de matemática. Hoje vive feliz
com uma dentista que diz: é ruiva e linda. Bela teve um amante durante o
casamento. E recomenda. Quando se divorciou, viveu tudo que não viveu na
adolescência. E também recomenda. Luzia recorda pouco de muita coisa - eu não me lembro mais quem me deixou assim. Trabalho
duro, filhos adolescentes, prestação da casa. E o tempo de tão distante se fez
imensidão. Sem fim. Sem noite clara. Sem telescópio de ver menina que brilha.
Luzia, enquanto esquece um pouco a dor no peito, pede: meninas, digam como eu era.
Silêncio, por favor. Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos. E cada
uma, do seu jeito, contou da beleza de Luzia ao recitar. Luzia poesia. Das
palavras que faziam chorar. Luzia luzia. E ali, Luzia luziu. Sorriu e do
sorriso renasceu o verso. Falado. Sentido. De novo. Você ainda é a mesma, disse
Vera e se for preciso eu repito. Aquela
memória de iluminar rosto, riso, resgatou não só a menina das palavras mágicas.
Todas as meninas, assim, mais leves, mais sábias, com 14 anos, se abraçaram na
praça. E o tempo de tão perto, se fez pequeno, e se fez ontem. Pegaram o
infinito com as mãos.
Ilustração: Rie Nakajima
* Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de
Botequim - safra 2017
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