30 janeiro 2018

CRESCER


Maria Amélia Mano

Quando via Sessão da Tarde, minha mãe revelou que, no filme, aquela não era a voz das pessoas, que era dublagem. Explicou o que era dublagem e eu me revoltei. Queria que as vozes fossem aquelas. Não queria que existissem outras línguas incompreensíveis. E passei um tempo desacreditando, um tempo percebendo que os lábios não acompanhavam os sons das vozes e um tempo boicotando filmes dublados. Dublagem era, então, uma mentira dos meus heróis.

Minha avó, já velhinha, afirmava que tinha visto D Pedro II sair do Brasil, com um saquinho de terra. Eu ficava maravilhada, imaginando ela, menina, dando adeus ao imperador, em algum cais do Rio de Janeiro. Depois, minha mãe disse que a vó foi ao museu de cera onde as cenas históricas eram representadas e que ela confundia realidade e fantasia. Eu não quis acreditar que a vó tinha problema de memória e que aquela cena linda que ela me descrevia, com tanto detalhe, só podia ser verdade.

Não preciso dizer que eu era uma criança teimosa. Que achava a brincadeira de roda do recreio a mais linda, apesar de tola. Que preferia acreditar em versões mais fantasiosas do que na realidade. Que demorava para os adultos me convencerem de suas verdades sem graça. E descobri, aos poucos, que ter grande impulso no balanço não ia me levar para perto do céu, que dentro dos pequenos buracos na parede ou nas árvores, não moravam pequenas famílias e seus cães. Que os cães nunca falariam.

Talvez o mais inacreditável era que meus professores da escola não me ensinariam o essencial para a vida. Que nem sempre os mais velhos eram mais sábios, mais maduros e sempre faziam o mais certo. Que nem todos as velhinhas como minha avó tinham cuidado e afeto de filhos. Que nem todas as crianças tinham natal, tampouco tinham pai e mãe. Que, nem sempre meus pais me ajudariam a fazer escolhas e a tomar decisões. E que nem sempre acreditar e rezar dava certo.

Com o tempo, as crenças, os enganos e as teimosias foram ficando mais complexos. Entendi que esforços nem sempre são recompensados, tampouco reconhecidos. Que podem te convencer que a boa ideia que teve não é sua, assim como a responsabilidade por algo que é de muitos, é somente sua. Que, para alguns, excluir é justo, uma necessidade, um fato e não há nada que se possa fazer. Que sempre se pede compreensão e paciência e calma e que, em muitos casos, nem sempre é isso que se tem que ter.

Ora, crescer parece que é um pouco dessa mistura amarga de novas verdades e versões convenientes. Também é abrir mão das nossas crenças. Crescer é ouvir e sentir o que não se quer ou não se entende e aprender a não bater o pé. Saber que nem todos os finais são felizes, mas que os monstros que tememos tanto, geralmente não estão atrás da porta ou no banheiro escuro, mas dentro de nós mesmos. Mas isso não vem de graça, não vem sem dor. Não vem rápido. Nem sempre vem.

No entanto, ainda vale sonhar com um mundo em que as vozes sejam verdadeiras e que todos falem o mesmo idioma. Vale sonhar com a mistura de realidade e fantasia na memória de quem amamos. Que crescer só não basta, é preciso aprender a ser feliz. E ser feliz é enfrentar, mas recuar, ser gente grande, mas dar a mão para a criança teimosa. Sim, a brincadeira de roda, entre amigos, no recreio, é o melhor da escola. E os cães falam, sim! Falam com o olhar.

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