27 fevereiro 2018

PACTO DE NUVENS


Maria Amélia Mano

         Quando menos esperavam, se encontraram ali, no velório da Tia Sarita, a que tinha testa imensa e pouco cabelo. Se cumprimentaram, distantes, quase sem intimidade.

Parece que foi ontem e passavam horas olhando o céu e as figuras que as nuvens formavam. Eram animais, carros, casas e castelos. Mas as figuras mais divertidas eram mesmo as velhas tias. Sim, as tias maternas com características físicas peculiares como orelhas de abano, testa grande, nariz imenso ou queixo protuberante desfilavam no céu arrancando risadas de pai e filho. A mãe fazia sempre a mesma pergunta: do que vocês riem?  Ambos davam qualquer desculpa aceita por ela com desconfiança.

A mãe não tinha senso de humor, especialmente em relação às tias queridas. E aquele jogo era mesmo segredo, pacto de homens. Havia uma disputa silenciosa entre eles que sempre terminava em gargalhadas. De fato, o menino era melhor: tinha imaginação crescente para as figuras humanas familiares nas nuvens. Tia Ivanira era a mais difícil de achar no céu por conter, ao mesmo tempo, no perfil, todas as saliências e reentrâncias. Uma raridade. Nuvem realmente extraordinária, repetiam eles.

O vento que esculpe nuvens, carrega dias, sopra estações, assobia canção de tempos, velas que move barcos e histórias. O menino vira homem e a distância se faz necessária para crescer. Não sabem como nem por que, tanto tempo, mas tão rápido, e passaram quatro anos sem que se vissem. O filho justificava: a pós-graduação, a turma nova, a namorada nova, o emprego novo, a casa nova, a turma velha. O pai explicava: a hérnia de disco, a prestação da casa, o humor da mãe, o processo da aposentadoria.

E ali, no velório da Tia Sarita, a da testa imensa, aquele reencontro sem jeito. Após o cumprimento formal, falaram das vidas, dos tropeços, recomeços e mudanças.

Desceram a rampa do cemitério mais próximos e olharam para o céu carregado, anunciando chuva. As nuvens formavam figuras grotescas e, uma delas, sim, era ela, a rara. Pai e filho falaram ao mesmo tempo: Tia Ivanira e deram uma longa risada. A mãe que vinha acompanhada da Tia Nair, a do queixo duplo, fez a pergunta de praxe: do que vocês riem? Antes que inventassem alguma desculpa, as primeiras gotas grossas de chuva começam a cair e todos se apressam para chegarem ao carro.

Todos sentam juntos no banco de trás. Pai e filho saem do enterro sorrindo com essa estranha felicidade fora de hora, felicidade proibida, felicidade de resgate e retorno, presença e abraço. Sentiam saudades, tinham tanto para falar, tanto que se perdoar, pelo silêncio, pela distância, pelo tempo.

Sabiam que o laço de amor esteve sempre amarrado tanto na memória dos grandes momentos, mas, mais, nesses pequenos pactos secretos que todos inventamos no cotidiano para ter história pra contar, ternura de parceiros de caminho, comparsas, cúmplices de pequenos e carinhosos crimes imperfeitos.

Assim, o carro entra em movimento e a mãe anuncia o destino: um almoço de família na casa da Tia Berenice, sim, aquela, a de nariz pontudo. 


Ilustração: Shozo Ozaki

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog