Maria Amélia Mano
Quando menos esperavam, se encontraram
ali, no velório da Tia Sarita, a que tinha testa imensa e pouco cabelo. Se
cumprimentaram, distantes, quase sem intimidade.
Parece que foi ontem e passavam
horas olhando o céu e as figuras que as nuvens formavam. Eram animais, carros,
casas e castelos. Mas as figuras mais divertidas eram mesmo as velhas tias.
Sim, as tias maternas com características físicas peculiares como orelhas de
abano, testa grande, nariz imenso ou queixo protuberante desfilavam no céu
arrancando risadas de pai e filho. A mãe fazia sempre a mesma pergunta: do que vocês riem? Ambos davam qualquer desculpa aceita por ela com
desconfiança.
A mãe não tinha senso de
humor, especialmente em relação às tias queridas. E aquele jogo era mesmo
segredo, pacto de homens. Havia uma disputa silenciosa entre eles que sempre
terminava em gargalhadas. De fato, o menino era melhor: tinha imaginação
crescente para as figuras humanas familiares nas nuvens. Tia Ivanira era a mais
difícil de achar no céu por conter, ao mesmo tempo, no perfil, todas as
saliências e reentrâncias. Uma raridade. Nuvem realmente extraordinária,
repetiam eles.
O vento que esculpe nuvens,
carrega dias, sopra estações, assobia canção de tempos, velas que move barcos e
histórias. O menino vira homem e a distância se faz necessária para crescer.
Não sabem como nem por que, tanto tempo, mas tão rápido, e passaram quatro anos
sem que se vissem. O filho justificava: a pós-graduação, a turma nova, a
namorada nova, o emprego novo, a casa nova, a turma velha. O pai explicava: a
hérnia de disco, a prestação da casa, o humor da mãe, o processo da
aposentadoria.
E ali, no velório da Tia
Sarita, a da testa imensa, aquele reencontro sem jeito. Após o cumprimento
formal, falaram das vidas, dos tropeços, recomeços e mudanças.
Desceram a rampa do
cemitério mais próximos e olharam para o céu carregado, anunciando chuva. As
nuvens formavam figuras grotescas e, uma delas, sim, era ela, a rara. Pai e
filho falaram ao mesmo tempo: Tia Ivanira
e deram uma longa risada. A mãe que vinha acompanhada da Tia Nair, a do queixo
duplo, fez a pergunta de praxe: do que
vocês riem? Antes que inventassem alguma desculpa, as primeiras gotas
grossas de chuva começam a cair e todos se apressam para chegarem ao carro.
Todos sentam juntos no banco
de trás. Pai e filho saem do enterro sorrindo com essa estranha felicidade fora
de hora, felicidade proibida, felicidade de resgate e retorno, presença e
abraço. Sentiam saudades, tinham tanto para falar, tanto que se perdoar, pelo
silêncio, pela distância, pelo tempo.
Sabiam que o laço de amor
esteve sempre amarrado tanto na memória dos grandes momentos, mas, mais, nesses
pequenos pactos secretos que todos inventamos no cotidiano para ter história
pra contar, ternura de parceiros de caminho, comparsas, cúmplices de pequenos e
carinhosos crimes imperfeitos.
Assim, o carro entra em
movimento e a mãe anuncia o destino: um almoço de família na casa da Tia
Berenice, sim, aquela, a de nariz pontudo.
Ilustração: Shozo Ozaki
Ilustração: Shozo Ozaki
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