15 maio 2018

CECÍLIA, LINHAS E LIBÉLULAS


Maria Amélia Mano

As gavetinhas compridas do móvel da antiga máquina de costura, duas de cada lado, mágicas, eram divididas para três meninas. A mãe se prestava a tirar tesouras e coleção de botões para que nós nos apropriássemos daquele território especial. Sobrava uma onde ela concentrava as varinhas de condão de consertar camisas do pai e transformar algodão em roupa de praça e festa, colcha de retalho, boneca de pano. Mas aquela gavetinha era tudo: esconderijo de tesouros, pedrinhas achadas no chão, tampinha de refrigerante com desenho da Formiga Atômica, Sonho de Valsa, refúgio de histórias solitárias, cozinha, quarto do filho, quintal, árvore, alpendre, pátio, casa própria, templo.

Vez por outra, na zanga de alguma coisa, ela nos despejava daquele prédio antigo e barulhento, sem escadas ou elevador, mas com uma roda imensa e correias possíveis de fantásticas escaladas de Fofoletes. Não demorava muito para que movimentos sociais em promessas de não mais brincar com bobinas, de não mais colocar vela acesa na gaveta seduzissem a proprietária e realizassem nova ocupação com jeito de conquista de terra, da terra, da lua, de marte, do universo. E nós, de novo, íamos com as trouxinhas, limpando linhas soltas das gavetas. As linhas, ah as linhas! As muitas linhas soltas eram sempre da Dodó, costureira de cidade pequena que produzia montes de linhas na volta de onde trabalhasse. Essa é a história da minha mãe, Cecília.

Fecho os olhos e escuto o barulho do pedal e da correia, música cantarolada conforme a roupa, ora samba, ora xote, ora Vesti Azul, Simonal, que ela ainda canta com o mesmo tom, sacudindo os ombros. Com a mesma animação, com o mesmo brilho no olhar. O brilho de guardar papéis de presente para encapar os livros de escola, de enfeitar a parede da casa velha e úmida com quadros baratos de pássaros e admirar, achando o máximo. Os pontos de cruz, pontos novos de tricô, ponto de chegada e partida, ponto de apoio, ponto, conto, cantos, contas de colar simples que brincamos sem pena e desfizemos, deixando cair brilho e vidro. Assim como destruímos a almofadinha do talco Coty, deixando o espelho do quarto e as nossas caras brancas em espirros descontrolados.

Cecília gosta das borboletas e libélulas e traz uma em pingente, cordão perto do peito. Não largou nem quando uma das asinhas de abalone se desprendeu. Está acostumada, penso, com contas quebradas, almofadas do talco descabeladas e algumas nuvens teimosas que, às vezes, escurecem o céu. Essas que na mais firme esperança, ela insiste, vão sair, vai abrir, vai ter sol, vai dar praia. E sigo admirando essa certeza de sol tanto quanto pedindo guisado com abobrinha. Sigo voltando para casa, como quem volta para a gavetinha da máquina velha que já não existe. Mas acreditem, as linhas da Dodó permanecem mesmo na volta do pedal elétrico, tornando o chão colorido de histórias.

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