Maria Amélia Mano
As gavetinhas compridas
do móvel da antiga máquina de costura, duas de cada lado, mágicas, eram
divididas para três meninas. A mãe se prestava a tirar tesouras e coleção de
botões para que nós nos apropriássemos daquele território especial. Sobrava uma
onde ela concentrava as varinhas de
condão de consertar camisas do pai e transformar algodão em roupa de praça
e festa, colcha de retalho, boneca de pano. Mas aquela gavetinha era tudo: esconderijo
de tesouros, pedrinhas achadas no chão, tampinha de refrigerante com desenho da
Formiga Atômica, Sonho de Valsa, refúgio de histórias solitárias, cozinha, quarto
do filho, quintal, árvore, alpendre, pátio, casa própria, templo.
Vez por outra, na zanga
de alguma coisa, ela nos despejava daquele prédio antigo e barulhento, sem
escadas ou elevador, mas com uma roda imensa e correias possíveis de
fantásticas escaladas de Fofoletes. Não demorava muito para que movimentos
sociais em promessas de não mais brincar com bobinas, de não mais colocar vela
acesa na gaveta seduzissem a proprietária e realizassem nova ocupação com jeito
de conquista de terra, da terra, da lua, de marte, do universo. E nós, de novo,
íamos com as trouxinhas, limpando linhas soltas das gavetas. As linhas, ah as
linhas! As muitas linhas soltas eram sempre da Dodó, costureira de cidade
pequena que produzia montes de linhas na volta de onde trabalhasse. Essa é a
história da minha mãe, Cecília.
Fecho os olhos e escuto o
barulho do pedal e da correia, música cantarolada conforme a roupa, ora samba,
ora xote, ora Vesti Azul, Simonal, que ela ainda canta com o mesmo tom,
sacudindo os ombros. Com a mesma animação, com o mesmo brilho no olhar. O
brilho de guardar papéis de presente para encapar os livros de escola, de
enfeitar a parede da casa velha e úmida com quadros baratos de pássaros e admirar,
achando o máximo. Os pontos de cruz, pontos novos de tricô, ponto de chegada e
partida, ponto de apoio, ponto, conto, cantos, contas de colar simples que
brincamos sem pena e desfizemos, deixando cair brilho e vidro. Assim como
destruímos a almofadinha do talco Coty, deixando o espelho do quarto e as
nossas caras brancas em espirros descontrolados.
Cecília gosta
das borboletas e libélulas e traz uma em pingente, cordão perto do peito. Não largou
nem quando uma das asinhas de abalone se desprendeu. Está acostumada, penso,
com contas quebradas, almofadas do talco descabeladas e algumas nuvens teimosas
que, às vezes, escurecem o céu. Essas que na mais firme esperança, ela insiste,
vão sair, vai abrir, vai ter sol, vai dar praia. E sigo admirando essa certeza
de sol tanto quanto pedindo guisado com abobrinha. Sigo voltando para casa,
como quem volta para a gavetinha da máquina velha que já não existe. Mas
acreditem, as linhas da Dodó permanecem mesmo na volta do pedal elétrico,
tornando o chão colorido de histórias.
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