29 maio 2018

CONTOS DE QUITANDA I - PÃO

Maria Amélia Mano

Vilma pegou ônibus errado. Percebeu na dobrada, mas pensou que era desvio. Em vez de pegar o via esquerda, pegou o via direita. Achou que já tinha superado os problemas com esquerda e direita. E sempre se achava esperta, mas se surpreendia. E, ainda, fez esforço para Luci, a filha já grande, passar por debaixo da roleta, da catraca, para não pagar passagem. Menina se arrastou no chão do ônibus reclamando. Mau humor que começou quando pediu doce de vendedor e mãe negou: se é hora de comer doce! Cobrador fez cara de poucos amigos. Povo na fila esperando para entrar. Calor, sem ar-condicionado no coletivo. Era o fim!

Já podia prever a manhã. Deixar Luci na escola atrasada. No serviço, olhar de reclamação do patrão, relógio ponto, a hora que terá de compensar. Saíram, Vilma e Luci, as duas apressadas do ônibus. A ideia era passar para o outro terminal, rapidinho, para tentar pegar o Circular, para o destino certo. Senhorinha gordinha cortou o passo das duas, saco de pães na mão. Foi por segundos. Por segundos. Estrondo, pão para todo lado, corpo caído no chão, sangue. Senhorinha não chegou ao terminal. Chevete pegou de frente.

A motorista, uma mulher distinta, saiu desesperada do chevete, aos gritos, pedindo ajuda. Pelo modo, pelo jeito, pelo barulho, pelo sangue, era sem jeito de ajuda. Parece que tudo silenciou em calma e lentidão. Não havia mais motivo de pressa. Acabou. Foi por segundos. Por segundos. E todas as mulheres se olharam, em algum lugar perdido da rua, em algum pedaço de vida, de vácuo, de vão, de voz muda, sem som, sem ruído: quem morreu, quem matou, quem viu tudo. Logo que saíram do lapso, da ausência, voltou o redemoinho.

Ambulância, povo que se junta. Vilma e Luci não mais atravessam a rua, não mais seguem destino programado. Sem rumo, em silêncio, caminham por alguma via estranha onde, na esquina, se erguia uma padaria imensa. Reconhecem a sacola. Sim, a mesma da senhorinha. Ela vai ficar bem, afirma Luci. Vai sim, responde Vilma. Nenhuma das duas acreditava, pequenas mentiras de uma manhã de erros. Mas, sim, poderia ter sido nós, pensaram em segredo. Na outra esquina, uma sorveteria, calor e uma casa bonita com jardim e cachorro simpático.

Jamais uma cidade sabe o tanto de vida e morte que tem, de alegria e tristeza que abriga, ao mesmo tempo. Às nove da manhã, o dono da casa bonita cuida das flores do jardim e acaricia o cachorro simpático, um rapaz sai da padaria de bicicleta para as entregas de pães, um casal entra e pede café, os dois terminais de ônibus ficam bloqueados com ambulância e polícia, o Circular com ar-condicionado passa duas vezes. Enquanto isso, um menino de rua recolhe os pães do asfalto e Vilma e Luci dividem uma Banana Split. No fim das contas, dos dias, das aventuras, a vida gira em torno de algum sabor, entre o salgado e o doce.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog