Maria Amélia Mano
Vilma pegou ônibus errado. Percebeu na dobrada,
mas pensou que era desvio. Em vez de pegar o via esquerda, pegou o via direita.
Achou que já tinha superado os problemas com esquerda e direita. E sempre se
achava esperta, mas se surpreendia. E, ainda, fez esforço para Luci, a filha já
grande, passar por debaixo da roleta, da catraca, para não pagar passagem. Menina
se arrastou no chão do ônibus reclamando. Mau humor que começou quando pediu
doce de vendedor e mãe negou: se é hora
de comer doce! Cobrador fez cara de poucos amigos. Povo na fila esperando
para entrar. Calor, sem ar-condicionado no coletivo. Era o fim!
Já podia prever a manhã. Deixar Luci na escola
atrasada. No serviço, olhar de reclamação do patrão, relógio ponto, a hora que
terá de compensar. Saíram, Vilma e Luci, as duas apressadas do ônibus. A ideia
era passar para o outro terminal, rapidinho, para tentar pegar o Circular, para
o destino certo. Senhorinha gordinha cortou o passo das duas, saco de pães na
mão. Foi por segundos. Por segundos. Estrondo, pão para todo lado, corpo caído
no chão, sangue. Senhorinha não chegou ao terminal. Chevete pegou de frente.
A motorista, uma mulher distinta, saiu
desesperada do chevete, aos gritos, pedindo ajuda. Pelo modo, pelo jeito, pelo
barulho, pelo sangue, era sem jeito de ajuda. Parece que tudo silenciou em
calma e lentidão. Não havia mais motivo de pressa. Acabou. Foi por segundos. Por
segundos. E todas as mulheres se olharam, em algum lugar perdido da rua, em
algum pedaço de vida, de vácuo, de vão, de voz muda, sem som, sem ruído: quem
morreu, quem matou, quem viu tudo. Logo que saíram do lapso, da ausência,
voltou o redemoinho.
Ambulância, povo que se junta. Vilma e Luci não
mais atravessam a rua, não mais seguem destino programado. Sem rumo, em
silêncio, caminham por alguma via estranha onde, na esquina, se erguia uma
padaria imensa. Reconhecem a sacola. Sim, a mesma da senhorinha. Ela vai ficar bem, afirma Luci. Vai sim, responde Vilma. Nenhuma das
duas acreditava, pequenas mentiras de uma manhã de erros. Mas, sim, poderia ter sido nós, pensaram em
segredo. Na outra esquina, uma sorveteria, calor e uma casa bonita com jardim e
cachorro simpático.
Jamais uma cidade sabe o tanto de vida e morte
que tem, de alegria e tristeza que abriga, ao mesmo tempo. Às nove da manhã, o
dono da casa bonita cuida das flores do jardim e acaricia o cachorro simpático,
um rapaz sai da padaria de bicicleta para as entregas de pães, um casal entra e
pede café, os dois terminais de ônibus ficam bloqueados com ambulância e
polícia, o Circular com ar-condicionado passa duas vezes. Enquanto isso, um
menino de rua recolhe os pães do asfalto e Vilma e Luci dividem uma Banana
Split. No fim das contas, dos dias, das aventuras, a vida gira em torno de
algum sabor, entre o salgado e o doce.
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