22 maio 2018

MIGRAÇÕES


Maria Amélia Mano

Dia da Árvore, de São Francisco, da Natureza, dos Pais. Todos são dias do meu pai, 81 anos, agrônomo e apaixonado por juntar sementes e galhos, cuidar de plantas e explicar os nomes científicos. Como se elas tivessem um pseudônimo, um nome artístico para uma vida pública. Na intimidade, o mistério da vida privada, poliamor permitido e desejado. Rápidos e múltiplos encontros com abelhas e beija-flores. Formas para facilitar os beijos. Caminho de pólen. Cores vivas para atrair. Perfumes doces. Vestidos leves para voar ao mínimo sopro. Néctar e seduções.

Para meu pai, cada flor tem poesia em cálice, corola e gineceu. Cada fruta tem surpresa, cada planta tem segredos e um parentesco inusitado. Jaca, abacaxi e amora não são frutas. Fruta é cada um dos gominhos que elas possuem. Pepino é parente da melancia e da abóbora: quase todas têm gavinhas que são aquelas mãozinhas verdes que fazem pequenas molas ou vírgulas. Os nomes que conhecemos servem para as plantas mas não têm o mesmo significado. Assim, as folhas têm bainha, as sementes podem ser nuas e os caules têm anéis que contam histórias e tempo de vida.

Crianças, no Nordeste, nesses dias de pai, fazíamos presentes para ele: cartões com desenhos de flores, matas, árvores, plantações. Adultas, já no Sul, assistimos às tentativas de ele fazer um pomar tropical já perto do Uruguai. Insistência, teimosia, mania que virou coisa de família. Há pouco, minha irmã mandou uma foto do filho com as mãos em concha cheias do fruto da melhor árvore que já subimos na infância: seriguela. Sim, seriguela em Santa Catarina. Tem também maxixe na Lagoa dos Patos.

Do Ceará, nas últimas férias, clandestinamente, no avião, trouxe um galho de pitombeira. Eu não levava fé mas faz uma semana e o pai me disse: uma semente brotou. Atravessou país-continente a planta que é folia, frevo dos Quatro Cantos, alimento dos passarinhos, festa dos meninos danados do sertão que fazem careta com aquela gastura nos dentes, lá atrás da boca. Não é à toa que o significado de pitomba em tupi é bofetada, chute forte e sopapo. 

Pai quer que a pitombeira, quando crescer, vá para o parque da Redenção em Porto Alegre. Diz que quer as cinzas dele lá, no pé da pitombeira, quando se for. Mas a pitombeira nem é árvore ainda. É só uma plantinha bebê de dois centímetros que dorme ao lado da cama do pai. Lugar mais quente pra sobreviver ao inverno, diz ele. Então, tem tempo. Tempo para continuar comemorando os dias do pai. Tempo para ouvir as histórias das raízes na terra. Tempo para abraçar com gavinhas. Tempo para continuar torcendo pelos amores das flores, pelas árvores viajantes, nômades, clandestinas. Esperança dos que migram.

Ah, pitombeira, vê se resiste! Mas pode crescer devagar. Bem devagar...

Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017

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