01 maio 2018

PRIMEIRO DE MAIO, CLAUDIA, CALVINO E OS CUPINS


Maria Amélia Mano

Há pouco mais de um ano fui convocada como testemunha para uma audiência na Justiça do Trabalho. Uma paciente, Cláudia, que fazia serviços gerais sofreu lesões nas mãos pela empresa não ter oferecido luvas. As lesões dela complicaram e eu a afastei do trabalho. Cláudia, mulher, negra e pobre, com filhos para criar foi demitida ainda doente e, buscando direitos, entrou na justiça. Lá estava ela e lá estávamos nós, mais de um ano depois do fato, aguardando a audiência.

Chego ao Fórum e logo percebo que ainda não havia começado a audiência das 9:00 horas quando a minha era a das 9:40. Bom, no mínimo, 40 minutos de atraso. Resolvo fazer algo útil e busco na internet soluções para um problema doméstico: cupim. Esses pequenos destruidores povoaram meu apartamento de asas indomáveis em dezembro e agora, me provocam, sem aparecer, depositando suas volumosas poeiras amarelas em lugares estratégicos como, por exemplo, o assento da cadeira em que sento.

Em um site, recomendam óleo de cravo ou vinagre para os casos iniciais de infestação. Recomendam paciência e persistência e se nada disso der certo, a opção é querosene e óleo lubrificante o que me dá a sensação de ter de queimar tudo o que está tomado. Também falam em desengripante o que, certamente, não é nenhum desses medicamentos para vírus sazonais, embora alguns sejam potencialmente venenosos. Indicam, também, aplicar borato de sódio com luvas e máscara, porque é muito venenoso e me imaginei protegida tal qual a missão que enfrentou o ebola na África.

            As buscas me fazem esquecer do tempo e até avaliar os sites. Alguns elogiam a capacidade do cupim de reciclagem e renovação, o que acredito. Outro, infantiliza, e os chama de monstrinhos e danadinhos. Outro tinha um erro de acentuação fazendo com que forro fosse forró o que me pareceu interessante diante da festa que “esses danadinhos” fazem nos meus móveis. E assim o fazem porque digerem celulose por terem microorganismos no intestino. Ou seja, se os bichinhos dentro dos cupins não existissem, eles seriam intolerantes à madeira como os intolerantes à lactose.

Mas o mais interessante dos cupins e o que os torna fortes, habitantes de todo o mundo, é a organização social. Uma infestação em um forro (ou forró) é uma cidade de túneis e galerias com uma divisão do trabalho rígida. É uma sociedade de castas com pouca mobilidade onde cada um tem uma função específica com o corpo modificado que precisa estar adaptado àquela missão. A rainha e o rei têm olhos e são adaptados para somente acasalar e procriar. Nada divertido se a cada intercurso amoroso, há a perda das asas e o risco de morte. Não, nada de conversa ou soninho, a missão é sobreviver grávida.

Há os soldados que desenvolvem verdadeiros capacetes nas cabeças e têm como inimigos, as formigas que são mais escuras e com cintura mais fina (assim define o site). Os operários são estéreis e trabalham 24 horas por dia, ávidos por madeira. São eles os que mantém a vida na cidade invisível que Calvino não descreveu, mas pode ser digna não somente de um capítulo, mas de um romance inteiro. Até porque, ali, esperando a audiência na Justiça do Trabalho, me dou conta de que a cidade dos cupins é parecida com a nossa sendo que tanto a cegueira dos operários quanto as orgias da família real têm uma razão de ser: a sobrevivência da espécie.

Chamada, finalmente, após 45 minutos, entro na sala de audiência e logo sou gentilmente informada de que não serei ouvida porque o processo que estava na 11ª vara foi para a 32ª vara e não mais será julgado ali. Serei novamente convocada, certamente daqui um ano ou mais, segundo o advogado da minha paciente. Ela que passou a noite em claro, nervosa, e pediu para ser liberada do trabalho para vir à audiência de cinco minutos. Ela que viveu de cesta básica quando foi demitida com as mãos machucadas e infeccionadas. Ela que ficou quieta em um canto e sequer teve o agradecimento da funcionária do fórum pela presença na audiência como eu tive. Eu, a médica branca. 

Saio da Justiça do Trabalho com a sensação de que os cupins são mais lógicos e justos em suas castas. Que os nossos reis e rainhas não se preocupam em manter a espécie, mas se especializam em explorar. Que Cláudia não é uma operária cega, “danadinha”, mas cega é mesmo a justiça nossa dos homens. Não essa cegueira desejada da estátua com os olhos vendados que deve julgar de forma imparcial, mas a cegueira para a justiça mesma, essa que não enxerga os processos de exclusão, as fomes, as dores, as vozes silenciadas em uma sala onde se espera por 45 minutos e em cinco, se diz que não é ali e será daqui um ano, quem sabe, um dia.

E volto para minha casa e varro a poeira dos cupins que, descubro pelo site, são excrementos dos operários. Agora, entendo tudo. No fundo, eles, os cupins, esses danadinhos, estão certos. Essa poeira é uma demonstração do desprezo por nós, seres de castas inexplicáveis. Para os cupins, os papeis rígidos servem para manter a vida na cidade. Com a gente é o contrário, a rigidez dos papeis mantém poucos e mata a maioria. E sigo varrendo a poeira-excremento, vencida e humilhada.

Ilustração: Sö-l'y-laisse


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