Maria Amélia Mano
Há
pouco mais de um ano fui convocada como testemunha para uma audiência na
Justiça do Trabalho. Uma paciente, Cláudia, que fazia serviços gerais sofreu
lesões nas mãos pela empresa não ter oferecido luvas. As lesões dela complicaram
e eu a afastei do trabalho. Cláudia, mulher, negra e pobre, com filhos para
criar foi demitida ainda doente e, buscando direitos, entrou na justiça. Lá
estava ela e lá estávamos nós, mais de um ano depois do fato, aguardando a
audiência.
Chego
ao Fórum e logo percebo que ainda não havia começado a audiência das 9:00 horas
quando a minha era a das 9:40. Bom, no mínimo, 40 minutos de atraso. Resolvo
fazer algo útil e busco na internet soluções para um problema doméstico: cupim.
Esses pequenos destruidores povoaram meu apartamento de asas indomáveis em
dezembro e agora, me provocam, sem aparecer, depositando suas volumosas poeiras
amarelas em lugares estratégicos como, por exemplo, o assento da cadeira em que
sento.
Em
um site, recomendam óleo de cravo ou
vinagre para os casos iniciais de infestação. Recomendam paciência e
persistência e se nada disso der certo, a opção é querosene e óleo lubrificante
o que me dá a sensação de ter de queimar tudo o que está tomado. Também falam
em desengripante o que, certamente, não é nenhum desses medicamentos para vírus
sazonais, embora alguns sejam potencialmente venenosos. Indicam, também, aplicar
borato de sódio com luvas e máscara, porque é muito venenoso e me imaginei
protegida tal qual a missão que enfrentou o ebola na África.
As
buscas me fazem esquecer do tempo e até avaliar os sites. Alguns elogiam a
capacidade do cupim de reciclagem e renovação, o que acredito. Outro,
infantiliza, e os chama de monstrinhos e danadinhos. Outro tinha um erro de
acentuação fazendo com que forro fosse forró o que me pareceu interessante
diante da festa que “esses danadinhos” fazem nos meus móveis. E assim o fazem
porque digerem celulose por terem microorganismos no intestino. Ou seja, se os
bichinhos dentro dos cupins não existissem, eles seriam intolerantes à madeira
como os intolerantes à lactose.
Mas o mais interessante dos cupins e o que os torna
fortes, habitantes de todo o mundo, é a organização social. Uma infestação em
um forro (ou forró) é uma cidade de túneis e galerias com uma divisão do
trabalho rígida. É uma sociedade de castas com pouca mobilidade onde cada um tem
uma função específica com o corpo modificado que precisa estar adaptado àquela missão.
A rainha e o rei têm olhos e são adaptados para somente acasalar e procriar.
Nada divertido se a cada intercurso amoroso, há a perda das asas e o risco de
morte. Não, nada de conversa ou soninho, a missão é sobreviver grávida.
Há os soldados que desenvolvem verdadeiros
capacetes nas cabeças e têm como inimigos, as formigas que são mais escuras e
com cintura mais fina (assim define o site). Os operários são estéreis e trabalham
24 horas por dia, ávidos por madeira. São eles os que
mantém a vida na cidade invisível que Calvino não descreveu, mas pode ser digna
não somente de um capítulo, mas de um romance inteiro. Até porque, ali,
esperando a audiência na Justiça do Trabalho, me dou conta de que a cidade dos
cupins é parecida com a nossa sendo que tanto a cegueira dos operários quanto
as orgias da família real têm uma razão de ser: a sobrevivência da espécie.
Chamada, finalmente, após 45 minutos, entro na sala
de audiência e logo sou gentilmente informada de que não serei ouvida porque o
processo que estava na 11ª vara foi para a 32ª vara e não mais será julgado
ali. Serei novamente convocada, certamente daqui um ano ou mais, segundo o
advogado da minha paciente. Ela que passou a noite em claro, nervosa, e pediu
para ser liberada do trabalho para vir à audiência de cinco minutos. Ela que
viveu de cesta básica quando foi demitida com as mãos machucadas e
infeccionadas. Ela que ficou quieta em um canto e sequer teve o agradecimento
da funcionária do fórum pela presença na audiência como eu tive. Eu, a médica
branca.
Saio da Justiça do Trabalho com a sensação de que os cupins são mais
lógicos e justos em suas castas. Que os nossos reis e rainhas não se preocupam
em manter a espécie, mas se especializam em explorar. Que Cláudia não é uma
operária cega, “danadinha”, mas cega é mesmo a justiça nossa dos homens. Não
essa cegueira desejada da estátua com os olhos vendados que deve julgar de
forma imparcial, mas a cegueira para a justiça mesma, essa que não enxerga os
processos de exclusão, as fomes, as dores, as vozes silenciadas em uma sala
onde se espera por 45 minutos e em cinco, se diz que não é ali e será daqui um
ano, quem sabe, um dia.
E volto para minha casa e varro a poeira dos cupins que, descubro pelo
site, são excrementos dos operários. Agora, entendo tudo. No fundo, eles, os
cupins, esses danadinhos, estão certos. Essa poeira é uma demonstração do
desprezo por nós, seres de castas inexplicáveis.
Para os cupins, os papeis rígidos servem para manter a vida na cidade. Com a
gente é o contrário, a rigidez dos papeis mantém poucos e mata a maioria. E
sigo varrendo a poeira-excremento, vencida e humilhada.
Ilustração: Sö-l'y-laisse
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