26 junho 2018

CATUAÍ VERMELHO


Maria Amélia Mano

            A água vai caindo lentamente do bule. Um fio de líquido quente derramado no pano tingido de marrom e a fumacinha suave combinada com o aroma forte. O tempo quase para. Carícia. Café. Esse grão escuro é que nem gente. Café é que nem amor da gente. Avaliado por corpo, doçura, acidez e sabor residual. Na medida, faz bem ao coração, acelera metabolismo, acorda e dá coragem. Quando demais, dá dor de estômago, tremor nas mãos, taquicardia, medo e o sono não vem.

            Experiência de amor e beijo é que nem café que nem sempre é bom, mas é sempre referência: termo de comparação. Esperança de melhora na próxima xícara. O mais gostoso é o que tem mais afeto e história. Mais cuidado e mais capricho. Mais desejo e mais espera. Mas nem sempre. No mundo do coração e do café não há verdades. A experiência pode ser rápida, mas pode ter sabor residual persistente. Aquele que anuncia o que foi bebido. E recusamos água para não tirar o gosto da boca. Sabor que se quer devagar e divagar.

Tempo lento. Bule vazio. Pano sendo torcido para as últimas gotas. As mais fortes. Abraço apertado de despedida. Café encorpado, aveludado, doçura própria equilibrada, doce onde tem que ser doce. Leveza, mas com sensação delicada de peso na língua, na ponta da língua. E as notas, nuances, castanha, chocolate, frutado; o acompanhamento perfeito, a companhia sonhada. Leite ou licor, se quer aninhar ou animar coração, dormir de conchinha ou conversar e fazer confissões a noite inteira. 

Armazenagem é cuidado de colo, que nem casa, lar, ninho. Melhor é lugar protegido e seco, livre dos bolores dos dias iguais; temperatura ambiente, natural. Mas não guardar por longo tempo. Café é fruta, é vivo. Café é como nós, já começa a morrer quando recém brota. Sofre. Sofre colheita, secagem, separação, torra e moenda. Sofre tempo que desgasta. Magoa. Sabor não se espera. O melhor tempo é hoje. Guardar para o momento ideal é se arriscar a perder. É urgente valorizar o desejo do presente. Degustar o agora.

Já sinto o sabor do primeiro gole. Hoje quero café passado no pano, conservando seus óleos mais valiosos. Amanhã talvez queira o expresso, mas é necessário preparo. Expresso é como entrega nua: arriscado, complexo, porque mais forte, porque tem toda a essência do fruto - arábica, catuaí vermelho. Mas hoje, não. Hoje quero calma e alma. Quero memória de mãe lavando o pano escuro. Quero lentidão e imensidão. Tarde preguiçosa. O tempo quase para. Carícia. Café. Esse grão escuro é que nem a gente. Café é que nem amor da gente.

Texto que faz parte da publicação: Santa Sede - Crônicas de Botequim - safra 2017

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