05 junho 2018

CONTOS DE QUITANDA II - QUIABO

Maria Amélia Mano

Seu Didi vendia quiabo em bicicleta, na rua. Quando passava nas casas, gritava: quiaaaaabo! E as crianças imitavam o velhinho em um eco engraçado. Daí, Seu Didi adoeceu de doença grave. Dizem que foi por causa do palheirinho que gostava de fumar, que a fumaça atingiu a garganta. Seu Didi emagreceu, foi para o hospital, voltou sem voz e com um buraco no pescoço. Ia para a rua quietinho, sem voz e sem palheiro. Então, colocou buzina de caminhão na bicicleta para chamar atenção das pessoas. Mas sentia falta da voz, da fala, até da zombaria das crianças.

Dona Cora, apesar de velhinha, tinha as mãos pequeninas de criança. Contam que ajudava o pai que pintava aquarelas para vender. A especialidade deles era os pássaros da região, paixão de Dona Cora. Com as aquarelas de passarinho, ilustravam até convite de casamento, aniversário e primeira comunhão. Assim fizeram por 35 anos até que o pai de Dona Cora faleceu dormindo, com quase cem anos. Dizem que ela se entristeceu sem volta, fechou a oficina de aquarela, nunca mais pintou. Guardou as mãozinhas pequeninas para os afazeres silenciosos da casa antiga, agora, sem cor e sem vida.

Seu Didi era querido na cidade. Assim, com as rifas da igreja, os bingos do sindicato, ele juntou o suficiente para tratar da garganta e dar jeito na mudez. Todos queriam de volta o velho quiaaaaabo e o eco das crianças. E, então, foi que Seu Didi voltou a falar. Mas era voz estranha, voz que saia das profundezas de um balde de alumínio, de dentro de um container. E Seu Didi até ensaiou, mas o velho jeito de gritar não saiu mais, nunca mais. E dizem que foi aí, na desesperança de voltar a ser quem era, que ele conheceu Dona Cora.

Dona Cora abriu a janela com a buzina de caminhão e se deparou com um senhor franzino em uma bicicleta, vendendo quiabos. Seus olhares de tristezas se cruzaram. As mãos pequeninas de Dona Cora e a voz metálica de Seu Didi eram sedução e coragem, mais que diferenças e vergonhas. Foi amor primeiro de oportunidade última, velhinhos que eram. Detalhes, ninguém sabe ao certo. O fato é que Dona Cora começou a apreciar batatinha com quiabo e Seu Didi, começou a se interessar pelos pássaros da região.

Não demorou para que fossem vistos juntos nas festas da padroeira, na praça, de mãos dadas. Dona Cora voltou a sorrir e suas mãos pequeninas se agitavam, nasciam novas aquarelas, as mais ternas, as mais coloridas. Seu Didi começou a observar os pássaros e seus cantos, começou a assobiar as canções mais lindas. A bicicleta vivia enfeitada de aquarelas de passarinhos e nunca mais ele usou a buzina de caminhão. Agora, o assobio era a marca doce. Na frente das casas, entoava um canto apaixonado. E as crianças, dizem, até os adultos,  respondiam sempre: quiaaaaabo.

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