Maria Amélia Mano
Meu amigo imaginário
A
vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados.
Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama,
pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última
vez e morre.
– E depois que morre?, perguntou o Visconde.
–
Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?
Monteiro
Lobato
Escrevo para falar
de memórias, mentiras e confissões, vergonhas e desculpas, sonhos teus e
nossos.
Gostava de te ouvir
falar dessas coisas imensas e desconhecidas. Tua voz não parecia ser tua. Era algo Cid Moreira,
algo narrador de histórias infantis dos pequenos discos coloridos de vinil. Tu
gostavas de Marisa Monte e desenho animado, falavas em voar de VASP como nunca
ouvi antes, especialmente para quem nunca tinha visto um avião, como eu, lá no
interior de algum nordeste. Um dia, achei que estavas de vestido, mas era um
roupão vinho, a mãe me explicou. E tu fostes virando mito, cada vez mais.
Teus presentes eram sempre novidades,
diferentes, e eu sabia, vinham de uma cidade imensa que passava na televisão, nas
novelas, no Sílvio Santos. Cidade onde todos da família foram tentar sorte. Uma
vez, ganhei caneta Parker que tinha uma cordinha que eu pendurava no pescoço,
feito colar. Teve o livrão do Monteiro Lobato que eu colocava no colo pra ler,
tão grande ele era, tão pequena eu era. Mas não curti o livro de origami da
Cinderela; eu já tinha 15 anos, né? Tudo era surpresa boa, estranheza em um
tempo em que centro e interior, norte e sul eram planetas diferentes e
desconhecidos.
Lembra
que tu querias escrever um livro de lembranças, de causos de família? Não sabia
o que escrever, mas já tinhas o título: coivara. E lembro do meu assombro te vendo
descrever com jeito teatral uma grande fogueira onde se consumiam fotos,
memórias boas e más, cartas e tudo o que se coloca no fogo para se ver queimar
como se vê queimar uma história que vira cinza e fumaça. Mas não deixa de ser
chama viva como um incêndio de recordações que não se consomem. E eu ficava
fascinada com a possibilidade de ter um livro que era produto de labaredas.
Lembro
que me perguntastes se eu tinha um amigo que ninguém via, só eu. E menti que
sim, para te agradar. Era o amigo imaginário, tu explicavas para minha mãe. E
quis, muito tempo depois, te ver e te confessar minha mentira. Tive
oportunidade, tu sabes. Mas tive medo. Era minha primeira vez em Sampa e estava
só. Tu moravas naquele lugar distante do Grande Prêmio de Fórmula I, Interlagos.
E eu não fui. Tu sabes. Eu tive vergonha e, para sempre, Interlagos será
Interlágrimas, porque foi a nossa última chance de encontro. Me perdoe, eu não
sabia que a vida era esse rosário de piscadas...
Mas tu
não viraste hipótese como disse a Emília ao Visconde no grande livro dourado
que destes. Virastes este amigo imaginário que não tive, mas que é presente e
real. Estamos, nós dois, agora, contando e ouvindo nossas histórias e eu
escrevo, sabe, sim, eu escrevo. E estive pensando sobre nós, tanto tempo e
sobre teus sonhos. Aquele livro, o que vinha das chamas. Então, acho que quero
escrever ele para nós, para mim, para ti, onde estiveres, voando de roupão
vinho, de VASP e cantando Bem que Se Quis com voz de vinil, conto de Andersen.
Com todo meu carinho
Amelinha
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