28 agosto 2018

CARTA INTERLÁGRIMAS


Maria Amélia Mano

Meu amigo imaginário

A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. 

– E depois que morre?, perguntou o Visconde.

– Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?
Monteiro Lobato

Escrevo para falar de memórias, mentiras e confissões, vergonhas e desculpas, sonhos teus e nossos.

Gostava de te ouvir falar dessas coisas imensas e desconhecidas. Tua voz não parecia ser tua. Era algo Cid Moreira, algo narrador de histórias infantis dos pequenos discos coloridos de vinil. Tu gostavas de Marisa Monte e desenho animado, falavas em voar de VASP como nunca ouvi antes, especialmente para quem nunca tinha visto um avião, como eu, lá no interior de algum nordeste. Um dia, achei que estavas de vestido, mas era um roupão vinho, a mãe me explicou. E tu fostes virando mito, cada vez mais.

Teus presentes eram sempre novidades, diferentes, e eu sabia, vinham de uma cidade imensa que passava na televisão, nas novelas, no Sílvio Santos. Cidade onde todos da família foram tentar sorte. Uma vez, ganhei caneta Parker que tinha uma cordinha que eu pendurava no pescoço, feito colar. Teve o livrão do Monteiro Lobato que eu colocava no colo pra ler, tão grande ele era, tão pequena eu era. Mas não curti o livro de origami da Cinderela; eu já tinha 15 anos, né? Tudo era surpresa boa, estranheza em um tempo em que centro e interior, norte e sul eram planetas diferentes e desconhecidos.

Lembra que tu querias escrever um livro de lembranças, de causos de família? Não sabia o que escrever, mas já tinhas o título: coivara. E lembro do meu assombro te vendo descrever com jeito teatral uma grande fogueira onde se consumiam fotos, memórias boas e más, cartas e tudo o que se coloca no fogo para se ver queimar como se vê queimar uma história que vira cinza e fumaça. Mas não deixa de ser chama viva como um incêndio de recordações que não se consomem. E eu ficava fascinada com a possibilidade de ter um livro que era produto de labaredas.

Lembro que me perguntastes se eu tinha um amigo que ninguém via, só eu. E menti que sim, para te agradar. Era o amigo imaginário, tu explicavas para minha mãe. E quis, muito tempo depois, te ver e te confessar minha mentira. Tive oportunidade, tu sabes. Mas tive medo. Era minha primeira vez em Sampa e estava só. Tu moravas naquele lugar distante do Grande Prêmio de Fórmula I, Interlagos. E eu não fui. Tu sabes. Eu tive vergonha e, para sempre, Interlagos será Interlágrimas, porque foi a nossa última chance de encontro. Me perdoe, eu não sabia que a vida era esse rosário de piscadas...

Mas tu não viraste hipótese como disse a Emília ao Visconde no grande livro dourado que destes. Virastes este amigo imaginário que não tive, mas que é presente e real. Estamos, nós dois, agora, contando e ouvindo nossas histórias e eu escrevo, sabe, sim, eu escrevo. E estive pensando sobre nós, tanto tempo e sobre teus sonhos. Aquele livro, o que vinha das chamas. Então, acho que quero escrever ele para nós, para mim, para ti, onde estiveres, voando de roupão vinho, de VASP e cantando Bem que Se Quis com voz de vinil, conto de Andersen.

Com todo meu carinho

Amelinha

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