Maria Amélia Mano
Algumas xícaras têm frases na
borda interna. Vai desde a simples marca do café até um todo dia é sempre uma
segunda chance. Gosto dessas pequenas filosofias de beirada de louça como
palavras escritas na areia de alguma praia. No caso da areia, o mar apaga as
inscrições e no caso do café, tomado, desencobre, desnuda a palavra. Assim,
vagueio em cafeteria, copo d’água e margem de xícara, espiando tardes e
saboreando universos que se criam e recriam no entorno: praças, calçadas, ruas,
cotidianos, pessoas.
Criança passa
rosnando com um dinossauro de plástico. Mal sorri, mantendo o semblante de
fúria pré-histórica e entendo: ele é o dinossauro. Homem passa falando sozinho
e percebo que está com fones de ouvidos. Impossível esquecer dos loucos de
pequenas cidades de infância. Um, em especial, creio, perseguia cavalos
selvagens imaginários. Crinas brilhantes voando em um tempo sem relógio. O
homem da rua nada me diz em si, mas o louco que lembrei, eu sei, era o próprio
tempo.
O rapaz fazia
poemas ruins, dava para se ouvir de longe. Mas, com o mindinho, percorria a
face dela, a orelha, como se tudo fosse uma mini montanha russa, aventura,
descoberta, alegria. O olhar dele, o carinho, não precisava falar, ele era o
próprio poema que não sabia fazer, mas já era. Diferente, o outro casal era
raiva enredada. Ela, infeliz, desgrenhada, vomitando palavras desnecessárias
com tremas, hífens e acentos que não existiam mais; inúteis como hímens, como
bidês higiênicos, como coisas que quebram, racham, envelhecem, desbotam, mofam.
Não vi o rosto dele, coberto de rugas, manchas nódoas ou ácaros. Temi por uma
crise alérgica pois ela, ele, o casal era o próprio bolor.
Um violino
desafinado tocando na esquina me salva da falta de ar. Um velhinho cego, canção
que entra pelos poros, portos, faróis, guias em alguma sombra, escuridão. O
velhinho era palco e plateia, era santo e altar. A senhorinha negra, magrinha
que passa com sacola de compras me lembra Maria Pilão, silenciosa no ofício de
pilar café em quintal de avó. Nunca ouvi a voz de Maria, só o barulho do pilão.
Maria era o próprio grão de café.
Menino
descalço persegue folha seca que voa ao vento na via. Ele me olha e sorri. Não,
ele não é o vento, tampouco a tarde. Ele não rosna, não se ilude, não tem
loucura, paixão, raiva, mofo, silêncio, submissão, canção cega. Ele é o único
que me pergunta. Baixo os olhos e procuro resposta na borda da xícara. Ainda há
água no copo. Essa que mata sede desde seu roçar nos lábios. Após um gole
generoso, ergo os olhos e o menino se foi. Justo agora, quando penso que sou,
um pouco, esse sonho descalço de perseguir folha-história em ruas de vento.
Justo agora, quando me falta inspiração e esse café vira mar que apaga palavras
em orla de xícara vazia. Justo agora.
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