21 agosto 2018

INSCRIÇÕES PARA UMA XÍCARA DE CAFÉ


Maria Amélia Mano

            
          Algumas xícaras têm frases na borda interna. Vai desde a simples marca do café até um todo dia é sempre uma segunda chance. Gosto dessas pequenas filosofias de beirada de louça como palavras escritas na areia de alguma praia. No caso da areia, o mar apaga as inscrições e no caso do café, tomado, desencobre, desnuda a palavra. Assim, vagueio em cafeteria, copo d’água e margem de xícara, espiando tardes e saboreando universos que se criam e recriam no entorno: praças, calçadas, ruas, cotidianos, pessoas.

Criança passa rosnando com um dinossauro de plástico. Mal sorri, mantendo o semblante de fúria pré-histórica e entendo: ele é o dinossauro. Homem passa falando sozinho e percebo que está com fones de ouvidos. Impossível esquecer dos loucos de pequenas cidades de infância. Um, em especial, creio, perseguia cavalos selvagens imaginários. Crinas brilhantes voando em um tempo sem relógio. O homem da rua nada me diz em si, mas o louco que lembrei, eu sei, era o próprio tempo.

O rapaz fazia poemas ruins, dava para se ouvir de longe. Mas, com o mindinho, percorria a face dela, a orelha, como se tudo fosse uma mini montanha russa, aventura, descoberta, alegria. O olhar dele, o carinho, não precisava falar, ele era o próprio poema que não sabia fazer, mas já era. Diferente, o outro casal era raiva enredada. Ela, infeliz, desgrenhada, vomitando palavras desnecessárias com tremas, hífens e acentos que não existiam mais; inúteis como hímens, como bidês higiênicos, como coisas que quebram, racham, envelhecem, desbotam, mofam. Não vi o rosto dele, coberto de rugas, manchas nódoas ou ácaros. Temi por uma crise alérgica pois ela, ele, o casal era o próprio bolor.

Um violino desafinado tocando na esquina me salva da falta de ar. Um velhinho cego, canção que entra pelos poros, portos, faróis, guias em alguma sombra, escuridão. O velhinho era palco e plateia, era santo e altar. A senhorinha negra, magrinha que passa com sacola de compras me lembra Maria Pilão, silenciosa no ofício de pilar café em quintal de avó. Nunca ouvi a voz de Maria, só o barulho do pilão. Maria era o próprio grão de café.

Menino descalço persegue folha seca que voa ao vento na via. Ele me olha e sorri. Não, ele não é o vento, tampouco a tarde. Ele não rosna, não se ilude, não tem loucura, paixão, raiva, mofo, silêncio, submissão, canção cega. Ele é o único que me pergunta. Baixo os olhos e procuro resposta na borda da xícara. Ainda há água no copo. Essa que mata sede desde seu roçar nos lábios. Após um gole generoso, ergo os olhos e o menino se foi. Justo agora, quando penso que sou, um pouco, esse sonho descalço de perseguir folha-história em ruas de vento. Justo agora, quando me falta inspiração e esse café vira mar que apaga palavras em orla de xícara vazia. Justo agora.

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