Maria Amélia Mano
Mais um pacotinho deixado na
porta do abrigo de igreja católica. Corpinho enrolado em trapos, encolhida.
Perdida. Parida não se sabe de quem. Nascida não se sabe de quando. Vinda não
se sabe de onde. Até os oito anos não tinha nome ou não lembra de ter nome ou
de como a chamavam. Não a chamavam. Foi quando um senhor caridoso que se dizia
Domingos a registrou. Lembra quando o senhor olhou em seus olhos com carinho,
pela primeira vez. Virou Aparecida e ganhou dia só seu, chamado aniversário. E
passou a festejar.
Na certidão de nascimento,
um dado marcou escola, trabalho e vida inteira: mãe ignorada. Perguntavam por isso e diziam assim, ignorada,
quando queriam feri-la. Ela mesma se dizia assim, se sentia assim: ignorada. Mesmo
com o consolo das freiras do abrigo que afirmavam, reforçavam que era nome
lindo, especial, de Santa maior encontrada em rio, padroeira, razão de promessa
e romaria. Santa negra e pequena como ela, Aparecida. Vinda de
não-se-sabe-quem, não-se-sabe-onde, não-se-sabe-como, como ela, Aparecida.
E aos dez anos, Aparecida
saiu do abrigo para trabalhar como doméstica. Não quis saber do passado, das
freiras, do abrigo, dos pais, não buscou parentes, família. Mas queria saber
dele, Domingos. O único que olhou com amor e se importou com um nome, o que
Aparecida mal aprendeu a assinar. Onde estaria ele? Como seria encontrá-lo?
Agradecer. Teria filhos? Estaria já velhinho, sozinho em uma praça em algum
domingo? E buscou por tudo, por todos e nada achou. Nunca mais. Domingos sumiu
em um tempo em que todos os dias eram iguais.
Domingos perdidos, infância
perdida. Domingos distantes. Domingos de sol e parques, colos e carinhos.
Domingos curtidos, brincados, sonhados, buscados. Tantos domingos. E entre
muitos domingos, Aparecida cresceu, fez vinte anos, trinta, teve filhos e
netos. Domingos passaram rápido e fez sessenta. Mas não esqueceu. Volta e meia
ainda se sente perdida ou se vê ignorada. Volta e meia luta para se sentir
Aparecida. Volta e meia ainda busca domingos e Domingos, esse tempo e esse
homem que imagina e espera, um dia, chamar de pai.
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