Maria Amélia Mano
Como
princípio, ele é precipício onde ele mesmo bamboleia como se houvesse tomado
três drinques doces, em jejum. Precipício que não é imprevisto, nem surpresa ou
inesperado, mas parte, rotina, encontro marcado dos que
transbordam. Precipício que é caminho-costume dos que encontram sentido até nas
paisagens minúsculas dentro das pedras falsas dos anéis de camelô. Até na
metade da bolachinha mergulhada no café, amaciada e enegrecida, bronzeada, transformada
em outra, como somos quando mergulhamos em outras histórias, verões e almas. Até
na boca aberta na rua, dirigida para cima, esperando a chuva para ter magia de
tomar água direto do céu. Até no álibi do crime falso da cidade inventada. Até no
candelabro da vitrine do antiquário do meio da quadra. Este dos filmes, carregado
por fantasma de camisolão branco que arrasta corrente na escuridão em
escadarias de madeira e medo. Obsoleto, facilmente substituído por românticas
lamparinas de querosene, esbeltas fluorescentes ou arrojadas lâmpadas de led.
Mas nem todas carregam essas velas que enternecem enquanto envelhecem, ficando
de longas e esguias a pequeninas e gorduchas, enrugadas, com seus sebos caídos,
como músculos flácidos anunciando um corpo que se consome em fogo. Assim, velas
em candelabro é o que se leva para precipícios, embrulhado em papel pardo, junto
com o anel do camelô, o gosto da bolachinha no café, as primeiras gotas de
chuva, as vias da cidade inventada, os poemas de guardanapo, os desenhos
abstratos de esferográfica nos cantos das folhas dos cadernos, as flores secas
encontradas nos meios dos livros, as tralhas, as trilhas e os desesperos, as
vontades de morrer, os ímpetos de viver. Viver vida escrita por paixão, acerto,
erro e “erre”: rama, arma, amar. Letra quase última do alfabeto que, presente
ou ausente, define um ser de existir,
um se de duvidar e apassivar e um sê de súplica. E sê é ordem bonita de
obedecer, dada por circunflexo com ar de prece, crucifixo. Como hino-reza em
coral de vozes negras. Coral que lembra cor, pedra e poesia: Colar de Carolina
de Cecília. Também esse colar para o embrulho de papel pardo, esse que vai para
o precipício que é ele. Esse que fica na beira. Enquanto a profundidade seduz,
enquanto vento chama, enquanto vida é borda, enquanto tempo é margem, enquanto
sopro é limite e pede que caia. Enquanto caio.
- Texto da Oficina em homenagem a Caio Fernando Abreu: Caio em mim
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