02 outubro 2018

RÉQUIEM PARA PRECIPÍCIOS


Maria Amélia Mano

Como princípio, ele é precipício onde ele mesmo bamboleia como se houvesse tomado três drinques doces, em jejum. Precipício que não é imprevisto, nem surpresa ou inesperado, mas parte, rotina, encontro marcado dos que transbordam. Precipício que é caminho-costume dos que encontram sentido até nas paisagens minúsculas dentro das pedras falsas dos anéis de camelô. Até na metade da bolachinha mergulhada no café, amaciada e enegrecida, bronzeada, transformada em outra, como somos quando mergulhamos em outras histórias, verões e almas. Até na boca aberta na rua, dirigida para cima, esperando a chuva para ter magia de tomar água direto do céu. Até no álibi do crime falso da cidade inventada. Até no candelabro da vitrine do antiquário do meio da quadra. Este dos filmes, carregado por fantasma de camisolão branco que arrasta corrente na escuridão em escadarias de madeira e medo. Obsoleto, facilmente substituído por românticas lamparinas de querosene, esbeltas fluorescentes ou arrojadas lâmpadas de led. Mas nem todas carregam essas velas que enternecem enquanto envelhecem, ficando de longas e esguias a pequeninas e gorduchas, enrugadas, com seus sebos caídos, como músculos flácidos anunciando um corpo que se consome em fogo. Assim, velas em candelabro é o que se leva para precipícios, embrulhado em papel pardo, junto com o anel do camelô, o gosto da bolachinha no café, as primeiras gotas de chuva, as vias da cidade inventada, os poemas de guardanapo, os desenhos abstratos de esferográfica nos cantos das folhas dos cadernos, as flores secas encontradas nos meios dos livros, as tralhas, as trilhas e os desesperos, as vontades de morrer, os ímpetos de viver. Viver vida escrita por paixão, acerto, erro e “erre”: rama, arma, amar. Letra quase última do alfabeto que, presente ou ausente, define um ser de existir, um se de duvidar e apassivar e um de súplica. E sê é ordem bonita de obedecer, dada por circunflexo com ar de prece, crucifixo. Como hino-reza em coral de vozes negras. Coral que lembra cor, pedra e poesia: Colar de Carolina de Cecília. Também esse colar para o embrulho de papel pardo, esse que vai para o precipício que é ele. Esse que fica na beira. Enquanto a profundidade seduz, enquanto vento chama, enquanto vida é borda, enquanto tempo é margem, enquanto sopro é limite e pede que caia. Enquanto caio.

 - Texto da Oficina em homenagem a Caio Fernando Abreu: Caio em mim

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