08 janeiro 2019

BERINJELA


Maria Amélia Mano


Último dia útil do ano. Sueli, a ex chacrete, espera o ônibus. Terminal: um homem cego mede com bengala a distância entre ônibus e plataforma. Uma belina de capô aberto vende berinjelas. No chão, uma criança ajeita os produtos que a mãe tira de uma sacola para vender em toalha estendida: vidros coloridos, lindos, cada um.

Chega o coletivo, ainda tem lugar para sentar. Uma mãe jovem com menininha no colo, as perninhas marcadas de feridas e picada de pernilongo. Menina esperta, balançando as perninhas, enquanto a mãe dorme quase sobre ela. Um homem no banco de trás conta como despistou a polícia, parece camelô. Menino carrega um balão: está feliz. Inicia a viagem.

Sueli abre a bolsa e sonha: bilhete da mega-sena da virada. Milhões, muitos planos para muitos anos. Mas, sabe, agora, vai ficar rica de todo jeito. Se não ganhar, vai explodir cofre, roubar banco e se esconder no terreno baldio ao lado de casa. Lá é cheio de mato, vai encher de carrapichos as roupas, ficar com perna marcada de mosquitos como a menininha do ônibus. Mas vai ser feliz. Vai perdoar o pai e o pai vai perdoá-la. Vai abraçar a mãe e os irmãos. Vai comprar o pônei branco que sempre sonhou, menina.

E sonha, cochila, saindo do esconderijo, pegando ônibus para o Goiânia e depois, Porangatu. Uns seis a sete dias de viagem, despistando. Ninguém vai desconfiar. Vai chegar em Porangatu e procurar o pai, aquele que contava histórias para as árvores, que dizia que fazia chover quando queria. Que a defendia de todas as assombrações e todos os demônios. Que se afastou de vergonha quando ela caiu na vida, depois de ser famosa, de ser chacrete.

De repente, no ônibus, o homem que parecia ser camelô, apresenta revólver e manda todo mundo esvaziar bolsas. Cobrador abre cofre. Quem dormia, acorda. A criança das perninhas marcadas se encolhe mais no colo: mãe e filha se abraçam. Homem cego começa a gritar e agitar bengala. O balão do menino estoura. No susto, motorista freia e assaltante se desequilibra. Cai revólver e todas as portas se abrem. As pessoas se atiram para fora enquanto o homem grita.

Sueli sai do ônibus e corre, corre, corre muito. Ouve o próprio coração bater, não olha para trás. Por instantes, pensa no homem cego, na criança dos mosquitos, no menino do balão, na mãe que dormia. Reza por eles, em silêncio e volta ao terminal, exausta. Quando a respiração volta ao normal, percebe que tudo ainda está lá, como deixou: a belina, os vidros coloridos que guardam perfume. Perfume de madeira, de canela, de citronela, de alecrim. Perfume para casa, para dar energia boa no ano que vem.

E Sueli escolhe perfume de arrumar casa e sonhos. Espera outro ônibus. Confere seus pertences na bolsa, bilhete da mega ali, esperando. Faz compras. Amanhã, vai rir de tudo isso. Vai nem ligar para o patrão, vai nem dar baixa na carteira de trabalho, vai nem contar para Alfredo que deve estar com a esposa, que nem ligou pra Sueli no Natal. Natal que passou sozinha, vendo televisão, filme de neve. E ri sozinha, Sueli ri. 

Sueli, a mais atrapalhada das chacretes, a que errava coreografia, que levantava perna na hora errada: chute atrasado. Agora, é senhora desconhecida, solitária, que trabalha no telemarketing, que fecha os olhos quando pronuncia um nome: Alfredo. É bom ter um segredo, um amor em segredo, uma cidade em segredo, proibida, perdida, misteriosa, como uma renda cobrindo um ombro, insinuando, vestido de noiva. O que sempre sonhou. Quem sabe agora.

Já no segundo ônibus, revisa de novo a bolsa: vidro vermelho de cheiro de pitanga doce, cartão da mega, duas berinjelas de um roxo especial, o revólver que pegou do chão do ônibus, no descuido, no desequilíbrio. Se não é amanhã com os seis números, será na segunda, no cofre do banco, pensa. É o último dia útil do ano. Vai rechear berinjela, vai ligar logo para o pai, vai comprar passagem para Goiânia. E vai dormir a noite inteira, sonhando com o pônei branco de infância galopando em Porangatu.


P.S.: texto selecionado para a coletânea A mulher e a Cidade do Selo Editorial Aliás

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