Maria Amélia Mano
Último dia útil do
ano. Sueli, a ex chacrete, espera o ônibus. Terminal: um homem cego mede com
bengala a distância entre ônibus e plataforma. Uma belina de capô aberto
vende berinjelas. No chão, uma criança ajeita os produtos que a mãe tira
de uma sacola para vender em toalha estendida: vidros coloridos, lindos, cada
um.
Chega o coletivo, ainda tem lugar para sentar. Uma mãe jovem com
menininha no colo, as perninhas marcadas de feridas e picada de pernilongo. Menina
esperta, balançando as perninhas, enquanto a mãe dorme quase sobre ela.
Um homem no banco de trás conta como despistou a polícia, parece
camelô. Menino carrega um balão: está feliz. Inicia a viagem.
Sueli abre a bolsa e sonha: bilhete da mega-sena da virada. Milhões,
muitos planos para muitos anos. Mas, sabe, agora, vai ficar rica de todo jeito.
Se não ganhar, vai explodir cofre, roubar banco e se esconder no terreno baldio
ao lado de casa. Lá é cheio de mato, vai encher de carrapichos as roupas, ficar
com perna marcada de mosquitos como a menininha do ônibus. Mas vai ser feliz.
Vai perdoar o pai e o pai vai perdoá-la. Vai abraçar a mãe e os irmãos. Vai
comprar o pônei branco que sempre sonhou, menina.
E sonha, cochila, saindo do esconderijo, pegando ônibus para o Goiânia e
depois, Porangatu. Uns seis a sete dias de viagem, despistando. Ninguém vai
desconfiar. Vai chegar em Porangatu e procurar o pai, aquele que contava
histórias para as árvores, que dizia que fazia chover quando queria. Que a
defendia de todas as assombrações e todos os demônios. Que se afastou de
vergonha quando ela caiu na vida, depois de ser famosa, de ser chacrete.
De repente, no ônibus, o homem que parecia ser camelô, apresenta
revólver e manda todo mundo esvaziar bolsas. Cobrador abre cofre. Quem dormia, acorda.
A criança das perninhas marcadas se encolhe mais no colo: mãe e filha se
abraçam. Homem cego começa a gritar e agitar bengala. O balão do menino
estoura. No susto, motorista freia e assaltante se desequilibra. Cai revólver e
todas as portas se abrem. As pessoas se atiram para fora enquanto o homem grita.
Sueli sai do ônibus e corre, corre, corre muito. Ouve o próprio coração
bater, não olha para trás. Por instantes, pensa no homem cego, na criança dos
mosquitos, no menino do balão, na mãe que dormia. Reza por eles, em silêncio e
volta ao terminal, exausta. Quando a respiração volta ao normal, percebe que tudo
ainda está lá, como deixou: a belina, os vidros coloridos que guardam perfume. Perfume
de madeira, de canela, de citronela, de alecrim. Perfume para casa, para dar
energia boa no ano que vem.
E Sueli escolhe perfume de arrumar casa e sonhos. Espera outro ônibus. Confere
seus pertences na bolsa, bilhete da mega ali, esperando. Faz compras. Amanhã,
vai rir de tudo isso. Vai nem ligar para o patrão, vai nem dar baixa na
carteira de trabalho, vai nem contar para Alfredo que deve estar com a esposa,
que nem ligou pra Sueli no Natal. Natal que passou sozinha, vendo televisão,
filme de neve. E ri sozinha, Sueli ri.
Sueli, a mais atrapalhada das chacretes, a que errava coreografia, que
levantava perna na hora errada: chute atrasado. Agora, é senhora desconhecida,
solitária, que trabalha no telemarketing, que fecha os olhos quando pronuncia
um nome: Alfredo. É bom ter um segredo, um amor em segredo, uma cidade em
segredo, proibida, perdida, misteriosa, como uma renda cobrindo um ombro,
insinuando, vestido de noiva. O que sempre sonhou. Quem sabe agora.
Já no segundo ônibus, revisa de novo a bolsa: vidro vermelho de cheiro
de pitanga doce, cartão da mega, duas berinjelas de um roxo especial, o revólver
que pegou do chão do ônibus, no descuido, no desequilíbrio. Se não é amanhã com
os seis números, será na segunda, no cofre do banco, pensa. É o último dia útil
do ano. Vai rechear berinjela, vai ligar logo para o pai, vai comprar passagem
para Goiânia. E vai dormir a noite inteira, sonhando com o pônei branco de
infância galopando em Porangatu.
P.S.: texto selecionado para a coletânea A mulher e a Cidade do Selo Editorial Aliás
P.S.: texto selecionado para a coletânea A mulher e a Cidade do Selo Editorial Aliás
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