Maria Amélia Mano
Para ler ao som de Caetano,
Cajuína, lentamente, por favor, lentamente.
Confesso: escrevi entorpecida por éter. Sim, éter
etílico, a quinta essência, nascida do espírito do vinho, imaginada por
alquimistas como substância que preenchia universo, onde se propagava a luz. Mais
uma confissão: sou menos fã de tabela periódica ou filosofias medievais do que
de embriaguez. E por ela, a tonteira, o torpor, a ternura, o êxtase, é que me
rendi e respirei em pano encharcado e meu hálito bêbado e doce denunciou o
caos. Senti medo.
Caetano era canção em cânion. Assim senti após mergulho em
pano que era mais que trapo. Entre canto e calma: tambor e alguém, longe, abismo
e eco que se perdeu nas rochas e pequenas cachoeiras, lágrimas nordestinas embebidas
por antiga química. Eu sei, poderia ser outra droga, uma droga de verdade. Mas
não, eu quis mesmo esse éter tosco, esse aturdimento, o porre, festim com
brinde sem taças, celebração de ausências, bodas de vazios.
Com olhar cheio de nuvens e náuseas, ainda aérea, insisti
em cantar junto. Misturei partes da canção: sina e pequenina, menino e homem, lágrima
e ilumina. O tempo se perdeu desimportante em acorde lento, dança lenta, batuque
lento, sopa quente de sabor lento; passo lento de mãos dadas, amor feito lento
como antes, como ontem, lento, lento. Desculpa pela ira pouca, a rima pobre, a
mira fraca. Desacertei esse alvo no meio do peito que ainda insisto em cuidar e
curar. Viagem nova de destino desconhecido.
Hoje, desconhecido não me assombra, tampouco o silêncio.
Também não me envergonho da aventura de soluços e engasgos de lágrimas, tampouco
das palavras em eco. Tudo revela que perda é susto, mesmo anunciada. A voz da
canção, ao longe, me lembra da humanidade que experimentei na pele. Essas
coisas que se desmancham no ar, fluídas, voláteis, dente-de-leão soprado no
campo, delicadeza e força na fragilidade,
matéria vida tão fina. O que precisa voar, se perder e se desfazer pra se manter.
Fortaleza na persistência do existir na imensidão.
E por querer existir é que me embriaguei, me soprei e me
espalhei, semente, desfazendo dias, desatando tardes, destardes e desnoites em
desejos de nudez, ainda. Não há pudores ou saídas para uma saudade urgente, não
há. Não há indecência ou fuga pra essa falta, não há. Não há culpa pela preguiça
dessas desmanhãs onde a água fria da nascente no cânion me acorda e renasço,
lenta, entre triângulo, violões, a lembrança do teu último sorriso e a última
gota imaginária de eterno éter.
Despedirmos: a que será que se destina?
Texto parte da coletânea Caio em Mim em homenagem a
Caio Fernando Abreu – Oficina Santa Sede - 2018
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