05 fevereiro 2019

PEQUENA DEMAIS


Maria Amélia Mano

Na parada de ônibus, palhaço assustador de olho azul e dicção ruim pede dinheiro para os filhos gêmeos que passam fome. Logo em seguida, homem que dizia ser de Araguaína, conta que sofre de hemorroidas e pede dinheiro pra voltar pra casa. Eu duvido e não dou.

Verdade é velhinha que acha que todo matinho que nasce ou é remédio ou é flor. Erva daninha não existe pra senhorinha esperançosa.

O velho taxista olha o mapa da cidade pra achar destino. Quem ainda olha mapas? Quem ainda compra alianças? Eles, O casal que não mais se ama e busca par especial pra casar, em esperança e esforço triste.

Triste como a moça do pedágio da fronteira que se chamava Ida mas dali nunca saía. Talvez sonhasse como meninos que são caddies no clube de rico e brincam de golfe no banhado da Vila Dique: bola na lama, taco de pau achado no lixo.

O mesmo lixo separado pela recicladora do galpão da zona norte que nunca comeu doce de Pelotas. Cidade onde teve casamento coletivo no presídio e alugaram até vestido de noiva branco e bonito, como as mulheres jamais poderiam ter e talvez, nunca possam.

Vestido de debutante que menina pobre e doente ganhou de político que queria ganhar eleição pra vereador. A mesma menina que, um dia, pediu pra ser internada na véspera de natal pois sabia que teria festa e presentes na enfermaria.

Na igreja da mesma cidade, mulher negra canta aleluia e na calçada, um bêbado trôpego passa e faz o sinal da cruz.

E eu, que sinto ternura por mapas e destinos, que dei doce de Pelotas pra recicladora, que nunca usei vestido de noiva, odeio políticos que vendem ilusão, amo nomes que contam histórias e sonhos de meninos, meninas, velhinhos, velhinhas, ervas daninhas, eu, que não consigo fazer coreografia de macarena ou village people e prefiro rinocerontes a unicórnios, que dei de nascer em cidade de nome que era pra ter acento, mas não tem.

Eu, logo eu, dei de duvidar da versão do palhaço e do nortista que pedem ajuda na parada de ônibus...

E assisti mulher negra de sotaque bonito, talvez africana, tirar um troco da carteira. Ela que deve saber o que é fome. Ela que deve saber o que é querer voltar pra casa e não ter como. Ela que deve ter menos que eu. Ela que me faz pensar que devo, que nem o bêbado na frente da igreja, fazer uma reverência e talvez uma oração.

Eu, embriagada de cotidiano, limites, distâncias, pequenas caridades, peço desculpas. Sou pequena demais pra esse mundo.

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