12 março 2019

MINUTO ENTRE CLARICES


Maria Amélia Mano

                Clarice, hoje senti seu sopro, pulsações no ouvido, sussurro sobre desistência digna, abandono nobre, aceite de falha e ruptura, perdão nosso por nós, assim, meio sem jeito. Foi em fresta entre dois livros seus inclinados na estante da livraria. Escotilha que separava espaços, o de dentro, sempre, onde me escondo.  O de fora, onde ele caminhava. Espiei paisagem retangular, como buraco de fechadura para visões proibidas. Lembrei mapa antigo em pele, linhas imaginárias, geografias únicas, territórios místicos, ilhas mágicas, latitudes e longitudes, pontos pra navegação sem bússola. Certeza de se perder.


            Cada amor é desafio, desatino. Cada corpo é trilha, abrigo ou trincheira, palco ou porão e um sem número de escadas caracóis entre os extremos, os limites. Tudo girando ali, na brecha do instante, da estante. Você entre nós. Eu buscando prosa profunda, ele buscando não sei o quê, não sabemos mais, de nós. Fingimos não ver, nós. Desnecessário encontro de sobreviventes, refugiados que fomos, nós. Defensores de pequenas coisas e causas. Conspirações em padarias vazias. Não somos mais cúmplices, perigosos. A polícia já não nos procura. Não há mais pistas a seguir. Nosso esconderijo foi descoberto.

Tento lembrar do retrato calado dele: seus sinais, seu signo, seu orixá, seu grau de miopia, sua festa, seu sabor de pizza, sua rua, seu quintal, sua árvore, sua fruta e a fruteira colorida na mesa, na mesma posição em que deixei, um dia. O dicionário íntimo, a ternura ácida e mundana, vadia. Eu buscando prosa e rimando meio-brega-poesia do ia, do queria, do entendia, do dizia, do amaria. Derivado de verbo no infinitivo e infinito do pretérito mais que imperfeito. Tempo passado em que já mudamos de roupa, de casa, de jeito, de mania, de caminhar, de cheiro, de gosto na boca, de olhar. Mudamos. Você bem sabe. Mudamos.

Seguimos como antigas leiteiras, com marcas secas de uma nata fervida nas bordas. Coisa difícil de limpar. Seguimos feito fragmentos, estilhaços, rasgos, agoras, esporas de marcar lombos em jornadas de depois de bombardeio, queda do céu, terremoto, guerra nuclear, meteoro, fim do mundo. Seguimos com chaves que já não abriam, receitas e contas antigas, remédios vencidos e essa memória em estante de livros. Mundo exposto entre capas, parapeito de janela onde se viu, se lembrou, se fingiu, se juntou, se remendou e se foi, em um minuto, só um minuto. Foi quando escureceu, Clarice.

O atendente da livraria cobriu espaço com obra sua que faltava, tipo dentista que arruma dente da frente, permitindo risada aberta e sem vergonha. Era igual ao do lado, o livro, o que você me sussurrava há um minuto, do perdão de nós pelos vãos, pelos nãos. Achei sentido, palavra, aquela que não precisava mais ser dita, leveza e alívio. Lembrei dos ponteiros dos relógios do camelô na calçada que marcavam horas diferentes. O tempo é mesmo confuso, Clarice. Como você, também quero viver muitos minutos num só minuto.


Texto parte da coletânea Caio em Mim em homenagem a Caio Fernando Abreu – Oficina Santa Sede - 2018

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