Maria Amélia Mano
Clarice, hoje senti seu sopro, pulsações no ouvido, sussurro
sobre desistência digna, abandono nobre, aceite de falha e ruptura, perdão
nosso por nós, assim, meio sem jeito. Foi em fresta entre dois livros seus inclinados
na estante da livraria. Escotilha que separava espaços, o de dentro, sempre, onde
me escondo. O de fora, onde ele caminhava.
Espiei paisagem retangular, como buraco de fechadura para visões proibidas. Lembrei
mapa antigo em pele, linhas imaginárias, geografias únicas, territórios
místicos, ilhas mágicas, latitudes e longitudes, pontos pra navegação sem
bússola. Certeza de se perder.
Cada amor é desafio, desatino. Cada corpo é trilha,
abrigo ou trincheira, palco ou porão e um sem número de escadas caracóis entre
os extremos, os limites. Tudo girando ali, na brecha do instante, da
estante. Você entre nós. Eu buscando prosa profunda, ele buscando não sei o quê,
não sabemos mais, de nós. Fingimos não ver, nós. Desnecessário encontro de
sobreviventes, refugiados que fomos, nós. Defensores de pequenas coisas e
causas. Conspirações em padarias vazias. Não somos mais cúmplices, perigosos. A
polícia já não nos procura. Não há mais pistas a seguir. Nosso esconderijo foi
descoberto.
Tento lembrar do retrato calado
dele: seus sinais, seu signo, seu orixá, seu grau de miopia, sua festa, seu sabor
de pizza, sua rua, seu quintal, sua árvore, sua fruta e a fruteira colorida na
mesa, na mesma posição em que deixei, um dia. O dicionário íntimo, a ternura ácida e
mundana, vadia. Eu buscando prosa e rimando meio-brega-poesia do ia, do queria,
do entendia, do dizia, do amaria. Derivado de verbo no infinitivo e infinito do
pretérito mais que imperfeito. Tempo passado em que já mudamos de roupa, de
casa, de jeito, de mania, de caminhar, de cheiro, de gosto na boca, de olhar. Mudamos.
Você bem sabe. Mudamos.
Seguimos como antigas
leiteiras, com marcas secas de uma nata fervida nas bordas. Coisa difícil de
limpar. Seguimos feito fragmentos, estilhaços, rasgos, agoras, esporas de
marcar lombos em jornadas de depois de bombardeio, queda do céu, terremoto,
guerra nuclear, meteoro, fim do mundo. Seguimos com chaves que já não abriam,
receitas e contas antigas, remédios vencidos e essa memória em estante de
livros. Mundo exposto entre capas, parapeito de janela onde se viu, se lembrou,
se fingiu, se juntou, se remendou e se foi, em um minuto, só um minuto. Foi
quando escureceu, Clarice.
O atendente da livraria cobriu
espaço com obra sua que faltava, tipo dentista que arruma dente da frente,
permitindo risada aberta e sem vergonha. Era igual ao do lado, o livro, o que você
me sussurrava há um minuto, do perdão de nós pelos vãos, pelos nãos. Achei
sentido, palavra, aquela que não precisava mais ser dita, leveza e alívio.
Lembrei dos ponteiros dos relógios do camelô na calçada que marcavam horas
diferentes. O tempo é mesmo confuso, Clarice. Como você, também quero viver muitos minutos num só minuto.
Texto parte da coletânea Caio em Mim em homenagem a
Caio Fernando Abreu – Oficina Santa Sede - 2018
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